O princípio do non-refoulement e a sua aplicação pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos: o Caso Sufi and Elmi v. United Kingdom
Victoria Silva Ferreira[1]
Entre os direitos conferidos aos requerentes de asilo em uma comunidade política específica está o princípio de non-refoulement, que consiste em um dos elementos fundamentais do regime de proteção àqueles que preencham os requisitos para tanto. O referido princípio é estabelecido no Art. 33 da Convenção de Genebra (Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados) e determina que nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.
Ademais, tal princípio está previsto em outros instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, nomeadamente na Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Art. 3º), na Convenção de Genebra de 1949 (Art. 45) no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Art. 7.º), na Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (Art. 8º), nos Princípios sobre a Prevenção Efetiva e Investigação de Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais (princípio de n.º 5) e no Art. 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (“CEDH”).
O princípio de non-refoulement pode ser qualificado como uma norma perentória de direito internacional, ou seja, jus cogens, norma imperativa de direito internacional da qual não é permitida derrogação, com fundamento nos Arts. 53 e 54 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.[2]
A obrigação de non-refoulement dialoga com duas amplas vertentes do direito internacional, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional dos Refugiados. Esta confluência entre os dois “regimes protetivos”, segundo Alice Edwards,[3] são oriundas das atrocidades decorrentes da Segunda Guerra Mundial, no qual milhões de judeus e muitos outros foram buscar segurança nas fronteiras internacionais.
Edwards afirma que o Direito Internacional dos Direitos Humanos visa garantir que tais eventos nunca mais se repitam, criando um regime global de direitos fundamentais, enquanto o Direito Internacional dos Refugiados responde ao deslocamento de pessoas em decorrência da violação de direitos humanos. Expõe a autora, afirmando que “os regimes são, portanto, complementares, ainda que distintos.”[4]
O princípio do non-refoulement também encontra correspondência no Art. 3.º da CEDH e dispõe que ninguém poderá ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes e se refere à proteção conferida aos estrangeiros relativamente à sua entrada, permanência e saída dos Estados Partes.[5]
A proibição de tortura prevista no referido Art. 3.º constitui um marco normativo a partir do qual o sistema europeu de direitos humanos consolida o princípio do non refoulement, nos casos em que há o risco do indivíduo expulso ou extraditado ser vítima de violações a sua integridade no seu Estado[6].
Contudo, tal abrigo que emana do Art. 3.º da Convenção, consoante afirma Silva,[7] somente se aplicará em último caso, sendo exigido pelo Tribunal que haja sido verificado um mínimo de gravidade e que esta deve ser analisada e apreciada. Quer dizer, portanto, que nem todas as formas de maus tratos merecem a tutela deste artigo ou são aptas a ensejar uma condenação de um Estado.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (“TEDH”), tendo como fundamento a sua própria jurisprudência, “não tem aplicado o Art. 3.º a todo e qualquer tratamento que porventura suscite a dúvida de sua licitude.”[8]
Especificamente no caso Sufi and Elmi v. United Kingdom, que pode ser reconhecido como leading case sobre o tema e sobre os obstáculos à expulsão de estrangeiros e a garantia do direito ao asilo”[9], se encontravam duas petições perante o TEDH, qual seja a de Abdisamad Sufi e Abdiaziz Elmi, nacionais da Somália. Sufi e Elmi ingressaram no Reino Unido de forma irregular no ano de 2003. Solicitaram asilo, contudo, tal solicitação foi negada diversas vezes. Somado a isto, Sufi foi acusado por crimes de roubo e ameaça, tendo sido condenado e, posteriormente, determinada a sua expulsão. O Reino Unido fundamentou tal determinação de expulsão sob a alegação de que os crimes cometidos por Sufi ameaçavam a segurança da sociedade bem como que em ele sendo deportado, não estaria submetido a risco nenhum no seu país de origem.[10]
O argumento utilizado pelo Reino Unido consiste no tradicional “cavalo de batalha” a que recorrem alguns Estados-Membros ao utilizarem-se da doutrina da margem de apreciação, aplicando-a aos indivíduos não-nacionais, com o fundamento na proteção à coletividade e à segurança nacional.
Após o indeferimento dos recursos interpostos, que tinham como objetivo evitar a deportação, no ano de 2007 as vítimas recorreram ao TEDH, alegando que a decisão de deportação à Somália os colocaria em risco, pois neste país estariam submetidos a tratamento cruel e degradante, em violação ao Art. 3.º da CEDH.
O TEDH considerou as alegações de Sufi e Elmi acerca da violência indiscriminada na capital da Somália, Mogadishu, e que um retorno implicaria em intensa submissão a uma situação real de risco a vida de toda a pessoa que vivia na capital. Referiu que, “embora o Tribunal tenha indicado anteriormente que seria nos casos mais extremos”, a situação de violência generalizada era suficiente para representar esse risco, e identificando tal risco, o TEDH estabeleceu os seguintes critérios:
[…] se as partes do conflito estavam empregando métodos e táticas de guerra que aumentavam o risco de vítimas civis ou diretamente mirando civis; em segundo lugar, se o uso de tais métodos e/ou táticas era generalizado entre as partes no conflito; em terceiro lugar, se os combates foram localizados ou generalizados; e, finalmente, o número de civis mortos, feridos e deslocados como resultado dos combates.[11]
O TEDH considerou que tais critérios não devem ser vistos no sentido de serem considerados taxativos e que, portanto, seria necessário esgotá-los, mas considerou um parâmetro apropriado para aferir níveis de violência no respetivo Estado. Da análise da conjuntura da capital somali, o TEDH entendeu por bem considerar que a elevada quantidade de informações era coerente com a alegação das vítimas e, logo, a situação de risco e de uma eventual violação aos preceitos referidos no Art. 3.º era presumível.
Todavia, ainda que muitos requerentes de asilo ao chegar à Europa possuam em sua garantia o princípio de non-refoulement nos casos em que estejam sujeitos à tortura, tratamento ou penas degradantes e/ou cruéis nos seus respetivos Estados, para além de todos os direitos assegurados na CEDH, permanecem sendo considerados como um grupo de extrema vulnerabilidade, estando estes mais expostos a toda e qualquer violação. Portanto, relativizar o princípio de non-refoulement e não lhe conceder a importância que possui na proteção dos refugiados é ir contra os standards europeus e internacionais de proteção.
Por essa razão, o caso Sufi and Elmi v. United Kingdom detém extrema relevância para a temática do princípio de non-refoulement, pois é nessa oportunidade que o TEDH determina os critérios em sua
jurisprudência que são considerados limites para a expulsão e deportação de requerentes
de asilo, em total concordância com as
diretrizes europeias e com os standards internacionais de proteção aos direitos
humanos.
[1] Mestranda em Direito Internacional e Europeu (Nova School of Law), THEMIS (Esade), advogada (Brasil), investigadora na Nova Refugee Legal Clinic (Nova School of Law), especialista em direitos humanos (FDUC).
[2] PAULA, Bruna Vieira de. O princípio do non-refoulement, sua natureza jus cogens e a proteção internacional dos refugiados e dos direitos humanos. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. v. 16, n. 31, 2008.
[3] EDWARDS, Alice. International Refugee Law. In: MOECKLI, Daniel et al. (Ed.). International human rights law. Oxford University Press, 2018. p. 539-553.Tradução nossa.
[4] EDWARDS, Alice. International Refugee Law. In: MOECKLI, Daniel et al. (Ed.). International human rights law. Oxford University Press, 2018. p. 539-553.Tradução nossa.
[5] SILVA, Elsa Raquel Ferreira da. A aplicação do Art. 3º da CEDH às situações de expulsão de estrangeiro portador de VIH. 2014. 117 fls. Dissertação. Mestre (Direitos Humanos) – Universidade do Minho, 30 de julho de 2014.
[6] ROSA, Marina de Almeida. A Concessão de Asilo e os obstáculos à expulsão de migrantes na Corte Europeia de Direitos Humanos a partir do caso Sufi and Elmi V. United Kingdom. no prelo.
[7] SILVA, Elsa Raquel Ferreira da. A aplicação do Art. 3º da CEDH às situações de expulsão de estrangeiro portador de VIH. 2014. 117 fls. Dissertação. Mestre (Direitos Humanos) – Universidade do Minho, 30 de julho de 2014.
[8] SILVA, Elsa Raquel Ferreira da. A aplicação do Art. 3º da CEDH às situações de expulsão de estrangeiro portador de VIH. 2014. 117 fls. Dissertação. Mestre (Direitos Humanos) – Universidade do Minho, 30 de julho de 2014.
[9] ROSA, Marina de Almeida. A Concessão de Asilo e os obstáculos à expulsão de migrantes na Corte Europeia de Direitos Humanos a partir do caso Sufi and Elmi V. United Kingdom.
[10] HUDOC. European Court of Human Rigths. parágrafos 11-17. Disponível em: <https://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/pdf/?library=ECHR&id=001-105434&filename=001-105434.pdf>.
[11] HUDOC. European Court of Human Rigths. Op. cit., parágrafo 241. Disponível em: <https://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/pdf/?library=ECHR&id=001-105434&filename=001-105434.pdf>.