O Princípio de Non-Refoulement à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: O Único Limite Absoluto à Expulsão? (Parte 1)

João Athayde Varela/ January 11, 2021/

João Athayde Varela[1]

          1. Generalidades

          Originariamente pensado tendo em vista a proteção de um coletivo de pessoas entendido como especialmente vulnerável (os refugiados), o princípio de non-refoulement consagrado no artigo 33.º, n.º 1, da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (doravante, Convenção de Genebra[2]) determina que “nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”. Estatui, todavia, o n.º 2 do mesmo artigo: “o benefício da presente disposição não poderá ser invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país”.

            Este mesmo princípio da não repulsão ou non refoulement está previsto na nossa legislação interna, não apenas em relação aos refugiados[3], mas, também, no que respeita aos imigrantes. Assim e quanto a estes últimos, o artigo 143.º, n.º 1, 1.ª parte, Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, também conhecida por Lei de Imigração, estabelece que “o afastamento coercivo[4] e a expulsão[5] não podem ser efetuados para qualquer país onde o cidadão estrangeiro possa ser perseguido pelos motivos que, nos termos da lei, justificam a concessão do direito de asilo”, sendo que este direito é reconhecido aos estrangeiros e apátridas “que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual” (cfr. art. 3.º, n.º 2, Lei de Asilo)[6]. Contudo e nos termos do art. 9.º, n.º 1, Lei de Asilo, o estatuto de refugiado pode ser negado por diversas razões, designadamente se existirem suspeitas graves da prática de certos crimes fora do território português ou a quem “represente perigo ou fundada ameaça para a segurança interna ou externa ou para a ordem pública”.

            Entretanto, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)[7], designadamente através do seu artigo 3.º, sob a epígrafe “Proibição da tortura”, veio de algum modo complementar e densificar o sobredito princípio, estatuindo-se aí que “ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”, proibição essa que encontra, também, acolhimento, tanto na Lei de Asilo[8], como na Lei de Imigração[9].

            Tendo, agora, presente a pena (acessória) de expulsão, a natureza estritamente judicial do processo penal implica que aquela só possa ser aplicada por um tribunal, independentemente da concreta situação administrativa – regular ou irregular – em que o cidadão estrangeiro se encontre (nulla culpa sine iudicio). Neste sentido, estatui o artigo 8.º, do Código de Processo Penal (CPP), que “os tribunais judiciais são os órgãos competentes para decidir as causas e aplicar penas e medidas de segurança”. Em todo caso e já na perspectiva da sua administração em cada situação sub judice, a Lei de Imigração, no seu artigo 151.º, diferencia os cidadãos estrangeiros consoante residam ou não, legalmente, em Portugal. Assim, tratando-se de estrangeiro sem título de residência válido, a referida pena poderá ser-lhe imposta caso tenha sido condenado por crime doloso a uma pena principal de prisão efetiva superior a seis meses ou multa em alternativa à pena de prisão (abstrata) superior a seis meses (cfr. art. 151.º, n.º 1, Lei de Imigração). Diversamente e na hipótese do condenado ser portador de um título de residência temporária válido[10], a pena acessória de expulsão só lhe será aplicável se tiver praticado um crime doloso punido com pena de prisão superior a um ano, exigindo-se, todavia, um juízo de justo equilíbrio, na medida em que o tribunal deverá ter em conta, ao decidir-se por essa aplicação, a concreta gravidade dos factos imputados ao arguido, a sua personalidade, a eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência no nosso país (cfr. art. 151.º, n.º 2, Lei de Imigração). Porém, se o réu possuir um título de residência permanente[11], o tribunal não poderá impor-lhe uma pena acessória de expulsão, a não ser que conclua representar a sua conduta um “perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional” (cfr. art. 151.º, n.º 3, Lei de Imigração).

            Paralelamente, a lei estabelece certos limites à expulsão, proibindo-se que esta ocorra nas situações seguintes: a) tendo o cidadão estrangeiro nascido em Portugal ou encontrando-se no nosso país desde idade inferior a 10 anos, aqui resida; b) se o cidadão estrangeiro tiver, efetivamente, a seu cargo filhos menores residentes em Portugal, seja qual for a nacionalidade destes (cfr. art. 135.º, n.º 1, Lei de Imigração). De qualquer modo, estes limites não prevalecem “em caso de suspeita fundada da prática de crimes de terrorismo, sabotagem ou atentado à segurança nacional ou de condenação por tais crimes” (cfr. art. 135.º, n.º 2, Lei de Imigração), pressupondo, portanto, estas hipóteses derrogatórias que, afora os casos de condenação, exista, ao menos, uma acusação pública promovida pelo Ministério Público (MP) que ateste a verificação de indícios suficientes da prática pelo expulsando dos ilícitos criminais em causa.

            Seguidamente e por referência ao artigo 3.º, CEDH, interessar-nos-á, em particular, analisar as repercussões que a jurisprudência do TEDH tem vindo a evidenciar, em termos de limitação à execução de ordens de expulsão ou afastamento determinadas por autoridades nacionais, administrativas ou judiciais.

(continua na segunda parte)


[1] Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e Investigador integrado do Centro de Estudo & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS) da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

[2] Concluída na cidade de Genebra (Suíça) a 28 de julho de 1951, a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados é aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 43 201, de 1 de outubro de 1960.

[3] Cfr. art. 47.º, n.º 1, por remissão para o art. 2.º, n.º 1, al. aa), Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, comummente designada por Lei de Asilo.

[4] O afastamento coercivo é determinado por uma autoridade administrativa, mais concretamente pelo diretor nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), dizendo respeito somente aos cidadãos estrangeiros que entraram ou permanecem, irregularmente, no nosso país.

[5] Diversamente do que se verifica com os estrangeiros em situação administrativa irregular, a expulsão é ditada por uma autoridade judicial, em cumprimento do mandado constitucional previsto no art. 33.º, n.º 2, CRP.

[6] Além da hipótese a que se alude em texto, o asilo pode ser, também, concedido por razões, constitucionalmente, garantidas (cfr. art. 33.º, n.º 8, CRP): isto é, em virtude do estrangeiro ou apátrida estar a ser perseguido ou gravemente ameaçado de perseguição por força da “atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana” (cfr. art. 3.º, n.º 1, Lei de Asilo).

[7] Apesar de concluída a 4 de novembro de 1950, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem só veio a ser aprovada para ratificação através da Lei n.º 65/78, de 13 de outubro.

[8] Cfr. art. 47.º, n.º 2, Lei de Asilo.

[9] Cfr. art. 143.º, n.º 1, 2.ª parte, Lei de Imigração.

[10] Em conformidade com o art. 75.º, n.º 1, Lei de Imigração, “a autorização de residência temporária é válida pelo período de um ano contado a partir da data de emissão do respectivo título e é renovável por períodos sucessivos de dois anos”.

[11] De acordo com o art. 76.º, ns.º 1 e 2, Lei de Imigração, “a autorização de residência permanente não tem limite de validade”, devendo, todavia, o seu beneficiário renovar o respectivo título “de cinco em cinco anos ou sempre que se verifique a alteração dos elementos de identificação nele registados”.

Share this Post

About João Athayde Varela

Licenciado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduou-se pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da mesma Faculdade e Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Nova School of Law.