Migrantes vítimas de crime: em especial, a proteção às vítimas do crime de tráfico de seres humanos

Diogo Santos Sereno/ December 28, 2021/

Diogo Santos Sereno[1]


RESUMO: A criminalização das ações contra migrantes se tem tornado um dado mais presente na legislação internacional e nacional. Apesar de, aos olhos da lei, os direitos de um cidadão estrangeiro, vítima de crime, serem os mesmos que um cidadão nacional, são, muitas vezes, vários os obstáculos que se colocam a essa paridade. Ademais, surge a seguinte questão: será que o próprio Estado português oferece condições suficientes de proteção às vítimas do crime de tráfico de seres humanos? Neste artigo, pretende-se analisar esta questão, tal como a importância da concessão legal de autorização de residência às respectivas vítimas, concluindo com uma breve reflexão sobre a relevância deste último instrumento como meio de o Estado conseguir desmantelar redes de tráfico e diminuir a criminalidade organizada.

PALAVRAS-CHAVE: Migrações, Tráfico de Seres Humanos, Proteção da Vítima, Autorização de Residência.


  1. Considerações Iniciais

Como pressuposto inicial, é importante sublinhar que aos cidadãos estrangeiros, alvo de crime, são dados os mesmos direitos de proteção ou assistência atribuídos a qualquer cidadão nacional (como, por exemplo, o direito ao patrocínio judiciário). 

De notar ainda que, mesmo estando em situação administrativa irregular[1], a pessoa estrangeira em causa beneficia-se dos sobreditos direitos[2], não obstante a burocracia do Estado nem sempre favorecer o respetivo exercício, sem esquecer outras possíveis limitações, designadamente o desconhecimento da língua portuguesa, a falta de ligações de suporte no país de acolhimento, entre outras. Tudo isto agravará ainda mais a situação de especial vulnerabilidade que a vítima estrangeira de crime experiencia já.

  • Análise legislativa: a proteção da vítima do crime de tráfico de seres humanos

Tem sido preocupação recorrente da comunidade internacional a luta contra o crime de tráfico de pessoas. Definido por muitos  como “escravatura moderna”[3], este delito é, entre nós, um crime público, previsto no artigo 160.º, Código Penal. É entendido como uma evidente violação da dignidade humana e de outros direitos e liberdades fundamentais (maxime, liberdade de decisão e ação individual), postos em causa por exploração, discriminação e violência.

Quando um crime de tal magnitude envolve migrantes, a postura da Justiça só pode ser uma: a proteção da dignidade da pessoa humana está acima da particular tutela conferida à cidadania portuguesa, impondo uma visão universalista de atribuição (e proteção) dos direitos[4], visão que é, aliás, confirmada por vários instrumentos legislativos, internacionais e nacionais.

2.1. Da legislação Internacional

No plano internacional, convém referir a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, mas, sobretudo, o Protocolo Adicional a esta Convenção relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças[5], sendo este o primeiro documento internacional a incluir uma definição clara de tráfico de pessoas para fins de exploração. 

Já no direito europeu, merece um destaque especial a Diretiva n.º 2004/81/CE do Conselho, de 29 de abril, relativa ao título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfico de seres humanos ou objeto de uma ação de auxílio à imigração ilegal e que cooperem com as autoridades competentes. Esta diretiva visa não apenas a harmonização das legislações nacionais, mas, também, garantir uma proteção acrescida às vítimas dos ilícitos em questão[6].

A transposição desta diretiva está na origem da disciplina contida nos artigos 109.º e seguintes, Lei dos Estrangeiros.

2.2. Da legislação nacional

A concessão de autorização de residência ao cidadão estrangeiro que “seja ou tenha sido vítima[7] de infrações penais ligadas ao tráfico de pessoas ou ao auxílio à imigração ilegal[8]” tem sua origem remota no disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 87.º do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, introduzida pelas alterações efetuadas através do Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro. Neste dispositivo legal não é, contudo, explicitado o tipo de delito em causa, dependendo apenas a concessão do direito de residência da colaboração com a justiça na investigação de atividades ilícitas passíveis de procedimento criminal. 

 Por outro lado, o mesmo diploma é omisso quanto ao modo de efetivação do direito de residência,razões da sua revogação e respectivo procedimento, assim como no que respeita às garantias conexas à salvaguarda da integridade do requerente e direitos do mesmo.

Mais tarde (2003), a concessão do direito de residência a vítimas estrangeiras de ilícitos criminais passa a constar de um preceito autónomo: o artigo 137.º-B, Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de fevereiro, prevendo-se aí tão somente a dispensa do respectivo visto[9].

2.2.3. O artigo 109.º da Lei dos Estrangeiros, em especial

Atualmente, o artigo 109.º, da Lei dos Estrangeiros, assume particular relevo, na âmbito da problemática em análise, impondo-se, no seu n.º 2 , três condições cumulativas para a concessão da autorização de residência: (i) a necessidade e interesse da presença do cidadão estrangeiro em Portugal, (ii) a vontade e disponibilidade do mesmo em colaborar com as autoridades de investigação, (iii) e a rutura dasrelações mantidas com os presumíveis autores dos crimes sob investigação. A ideia principal é a de que o Estado acabe por beneficiar-se, na descoberta da verdade material, da colaboração das vítimas, caso lhes conceda, em contrapartida, o direito de residência em território nacional[10].

A autorização de residência tem a duração de um ano e pode ser renovada por iguais períodos, enquanto se mantiverem as condições atrás referidas[11]. Tal significa que, a partir do momento em que a presença do cidadão estrangeiro já não for necessária para a investigação ou julgamento dos crimes em questão, ou se o respectivo processo criminal tiver, entretanto, sido arquivado, a autorização de residência não será renovada. Há, contudo, a possibilidade de o cidadão estrangeiro requerer o título de residência com dispensa de visto, nos termos do previsto no art. 122.º, n.º 1, al. n), Lei dos Estrangeiros.

De notar ainda que os n.ºs 4 e 5 do artigo 109.º, Lei dos Estrangeiros, preveem a criação de um regime especial de concessão de autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas[12]. Assim, é concedida autorização de residência[13], ou esta será, sucessivamente, renovada, em ambos os casos com dispensa do requisito do interesse para a investigação criminal em curso da presença ou colaboração do ofendido[14], quando circunstâncias pessoais da vítima o justifiquem, sendo essas circunstâncias ponderadas casuisticamente e estando relacionadas com a segurança ou saúde da vítima, seus familiares ou contactos próximos, a situação familiar da vítima ou outras situações de vulnerabilidade que a afetem[15].

  • Reflexões finais

Da análise do regime legal – internacional e nacional – conclui-se que o Estado usa o Direito Penal como um instrumento para legitimar e controlar a sua política de imigração. No que respeita, em particular, às vítimas de tráfico, essa gestão serve, também, para acautelar especiais situações de vulnerabilidade mediante a concessão ou renovação de autorizações de residência.

Ora, apesar de se verificar, em geral, uma efetiva proteção do Estado Português aos cidadãos estrangeiros que sejam ou tenham sido vítimas de infrações penais ligadas ao tráfico de pessoas, colocar-se-á a questão de saber se este dispositivo legal – que pretende, e bem, a proteção de direitos humanos – não pode também, em boa verdade, ser perspectivado como tendo, sobretudo, em vista o combate à criminalidade organizada. Dito de outro modo, em jeito de questão: serão, afinal, mais de ordem securitária do que humanitária as razões que determinaram a adoção deste regime de proteção?

Da leitura do mesmo, parece concluir-se que lhe está subjacente uma ideia de negociação ou mediação[16]: desde que a vítima estrangeira coopere com as autoridades policiais e/ou judiciárias, fornecendo-lhes informações essenciais à descoberta da verdade material ou testemunhando na investigação e subsequente processo judicial, o Estado consentirá na sua permanência em território nacional, mas, em princípio, somente enquanto a presença da vítima se revelar necessária à perseguição e punição dos agentes das infrações sub judice

Cabe-nos terminar com a dúvida seguinte: a concessão in casu de autorizações de residência não deveria ter como objetivo principal, ou até único, a proteção da vítima, em vez de ser – numa perspetiva quase apenas utilitarista – um instrumento nas mãos do Estado para encorajar comportamentos que favoreçam o desmantelamento de grupos criminosos?


[1] Licenciando em Direito (4.º ano) na NOVA School of Law e Membro da Linha de Investigação “Migração & Poder Punitivo do Estado” da NOVA Refugee Legal Clinic.

[1] Apesar de ter vindo a diminuir ao longo dos anos, a União Europeia identificou, em 2020, cerca de 125 mil passagens irregulares das fronteiras, uma diminuição de 12% face a 2019. Vide site oficial da União Europeia, disponível em https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/promoting-our-european-way-life/statistics-migration-europe_pt#illegalbordercrossings

[2] Entretanto, caso o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras  tome conhecimento da situação irregular, será o respetivo cidadão estrangeiro notificado, de imediato, no sentido de “abandonar voluntariamente o território nacional no prazo que lhe for fixado, entre 10 a 20 dias” (cfr. art. 138.º, n.º 1, Lei dos Estrangeiros).

[3] Neste sentido, vide Global Report on Trafficking Persons (2009), da UNODC, disponível em: http://www.unodc.org/documents/human-trafficking/Executive_summary_english.pdf.

[4] MIRANDA, Jorge, A Constituição e a dignidade da pessoa humana, p.4 [al. h)]. Disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/18404/1/V0290102-473-485.pdf

[5] Aprovado por Portugal através da Resolução n.º 32/2004, da Assembleia da República, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 19/2004, de 2 de abril.

[6] Além destes documentos internacionais e europeu, importa fazer referência, no que respeita apenas ao tráfico de pessoas, à Decisão-quadro 2002/629/JAI, de 19 de julho de 2002, mais tarde substituída pela Diretiva 2011/36/UE do Parlamento e do Conselho, de 5 de abril; e a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho

[7] Conforme o previsto no preâmbulo do Decreto-lei n.º 368/2007, de 5 de novembro, entende-se por vítima de tráfico “a pessoa em relação à qual hajam sido adquiridos indícios da prática desse crime, por autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, ou quando o coordenador do Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos entender que existem motivos suficientemente ponderosos para crer que essa pessoa é vítima de tráfico”, determinando-se ainda que “a necessidade de proteção se mantém enquanto houver risco de a vítima, os seus familiares ou pessoas que com ela mantenham relações próximas serem objeto de ameaças ou ofensas a bens pessoais ou patrimoniais, praticadas pelos agentes do tráfico”.

[8] Cfr. art. 109.º, n.º 1, Lei dos Estrangeiros.

[9] Sob a epígrafe “Auxílio à investigação”, o artigo 137.º-B determina que “o cidadão estrangeiro que colabore na investigação de atividades ilícitas passíveis de procedimento criminal, nomeadamente ao nível da criminalidade organizada, pode ser dispensado de visto para obtenção de autorização de residência”.

[10] Neste sentido, vide MINISTÉRIO PÚBLICO DE PORTUGAL, Diretrizes e Princípios recomendados sobre Direitos Humanos e Tráfico de Pessoas, disponível em http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/diretrizesprinc-dhtraficopessoas.pdf.

[11] Cfr. art. 109.º, n.º 5, Lei dos Estrangeiros.

[12] Este regime especial está previsto no Decreto-Lei n.º 368/2007, de 5 de novembro.

[13] Esta autorização é concedida pelo Ministro da Administração Interna, por sua iniciativa ou proposta do órgão de polícia criminal competente ou do coordenador do Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos (cfr. artigo único, n.º 1, Decreto-Lei n.º 368/2007).

[14] Cfr. art. 109.º, n.º 2, als. a) e b), Lei dos Estrangeiros.

[15] Cfr. artigo único, n.º 2, Decreto-Lei n.º 368/2007.

[16] A exceção poderá ser o Decreto-Lei 368/2007 (vide nota de rodapé n.º 13), sucedendo, todavia, que as situações especiais aí descritas – além da sua relativa imprecisão – estão sujeitas à apreciação e valoração discricionárias do ministro competente.


COMO CITAR ESTE BLOG POST

Sereno, Diogo Santos. “Migrantes vítimas de crime: em especial, a proteção às vítimas de crime de tráfico de seres humanos”. NOVA Refugee Clinic Blog, dezembro 2021. <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=migrantes-vitimas-de-crime-em-especial-a-protecao-as-vitimas-do-crime-de-trafico-de-seres-humanos>

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About Diogo Santos Sereno

Estudante do 4.º ano da Licenciatura em Direito na NOVA School of Law. Representante dos Estudantes de 1.º Ciclo no Conselho Pedagógico (desde outubro de 2019) e Presidente da Direção da Associação de Estudantes da NOVA School of Law (de dezembro de 2020 até dezembro de 2021).