A perseguição em razão da orientação sexual

Rui Garrido/ December 6, 2021/

Rui Garrido[1]

Resumo: Uma das condições essenciais para a atribuição do estatuto de pessoa refugiada reside no receio fundado de sofrer perseguição, no seu país de origem, motivada por fatores de vária ordem. Dentre estes fatores não figura a orientação sexual. Fruto da particular vulnerabilidade reconhecida às pessoas LGBTI, o ACNUR tem procurado esclarecer, através de diretrizes especificas, que o direito internacional dos refugiados protege aqueles e aquelas que fogem em razão da perseguição baseada na sua orientação sexual.


Introdução

            A guerra civil na Síria e, mais tarde, o surgimento do grupo extremista Daesh impuseram uma reflexão acerca da questão da pessoa refugiada e das suas motivações para sair do seu país de origem e procurar proteção internacional. Até então, a questão da orientação sexual (mas também da identidade de género, que não trataremos neste texto) era tida como marginal nos pedidos de asilo aos países europeus e nos Estados Unidos da América. Ora, o contexto de conflito armado é um dos grandes responsáveis pelos fluxos de migrantes. No entanto, a experiência individual de cada uma destas pessoas é bastante diversa, na medida em que, tendo em comum o facto de fugirem da violência de um conflito armado, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo (LGBTI) são particularmente visadas e vulneráveis.[1]

            As primeiras duas décadas do século XXI foram de grandes avanços em matéria de direitos humanos das pessoas LGBTI, mas não houve um progresso significativo em outras áreas do direito internacional, desde logo no direito internacional humanitário, nem no direito internacional relativo à questão das pessoas refugiadas. Neste último, recordamos a Convenção de Genebra relativa ao estatuto da pessoa refugiada, de 1951, cujo artigo 1.º A(2) determina que têm direito a tal estatuto aqueles que: 

Que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar.[2]

A Convenção de Genebra de 1951 elenca um conjunto de fatores pelos quais as pessoas podem sofrer perseguição, mas não tem uma abordagem sensível às questões do género, uma vez que não se fala na proteção específica a mulheres refugiadas – que podem ser perseguidas por um vasto conjunto de fatores, sobretudo culturais – nem tampouco às denominadas minorias sexuais. Especificamente no caso das minorias sexuais, o ACNUR tem procurado alertar os Estados para a necessidade de se entender a orientação sexual como fator de perseguição. Em 2008, adotou uma nota orientadora nesta matéria, posteriormente substituída pelas diretrizes de proteção internacional relativa aos pedidos de asilo com base na orientação sexual e na identidade de género, de 2012. O que importa aqui perceber é que as pessoas com uma orientação sexual e/ou uma identidade de género diversa podem ser objeto de violência e perseguição. O ACNUR entendeu que estas pessoas devem ser compreendidas como umgrupo social específico, na medida em que são percecionadas como tal – quer entre si, mas sobretudo pelos outros. A doutrina tem acompanhado este entendimento.[3]

As diretrizes do ACNUR (2012)

            O principal documento nesta matéria é a diretriz do ACNUR relativa aos pedidos de asilo baseados na orientação sexual e na identidade de género forma adotadas em 2012.[4] Este documento vem substituir a nota interpretativa da mesma organização, adotada em 2008.[5] No documento de 2012, o ACNUR procedeu uma análise substantiva daqueles que são os motivos que podem justificar um receio fundado de ser vítima de perseguição com base na orientação sexual. 

            Relativamente à questão da perseguição, James Hathaway determinava que tal se verificava sempre que houvesse “a sustained or systematic violation of basic human rights demonstrativa of a failure of state protection”.[6]É neste sentido que a diretriz do ACNUR, sem especificar a questão concreta da perseguição, elenca um conjunto de violações de direitos humanos pelos quais as pessoas podem ser perseguidas. Dentre eles estão os atos de tortura, a violência sexual, as perceções sociais da homossexualidade como prática cultural ou moralmente condenável, o risco de detenção arbitrária, institucionalização forçada, esterilização forçada, e terapias “corretivas”.[7] Configura ainda uma forma de perseguição a prevalência de legislação que criminaliza atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo. Um caso muito mediático de perseguição do Estado às pessoas LGBTI foram as purgas na República Russa da Tchetchena, que ainda se mantém.[8]

A questão concreta da perseguição fundamentada na orientação sexual

            A determinação da perseguição assume uma maior complexidade, na medida em que, muitas vezes, torna-se bastante difícil para as autoridades dos países recetores aferir os contornos do receio fundado dos requerentes. Já observava Janna Weßels, em 2011, que a interpretação da perseguição estava dependente dos decisores políticos.[9] Mais ainda, estes agentes são portadores de um conjunto de crenças e valores, que acabam por impactar nas suas perceções e – sobretudo – no que esperam do comportamento das pessoas requerentes de proteção internacional. 

            Neste caso, a jurisprudência tem desempenhado um papel importante na densificação da interpretação da questão relativa à perseguição fundamentada na orientação sexual. Neste sentido, por exemplo, o High Court of Australia, em 2003, apreciou esta matéria no caso de dois requerentes de asilo, naturais do Bangladesh, que tinham tido uma relação afetiva ainda no seu país de origem, mas sofrido abusos, ameaças e violência física perpetrada por vizinhos e por grupos fundamentalistas religiosos.[10] Pendia, inclusive, sobre um dos requerentes uma Fatwadeterminando a sua condenação à morte por apedrejamento. 

            O Tribunal, avaliando uma decisão de 1.º instância que não teve em consideração a questão da perseguição, observou que tal receio de perseguição é passível de alterar o comportamento da pessoa perseguida, e como tal, pode induzir em erro as autoridades dos outros Estados quando avaliam processos desta natureza. Na realidade, o Tribunal Australiano referia-se à questão das perceções, as quais fazem com que se espera que um requerente de asilo com base na sua orientação sexual se mostre e comporte de forma estereotipada. Sublinha o Tribunal que “The notion that it is reasonable for a person to take action that will avoid persecutory harm invariably leads a tribunal of fact into a failure to consider properly whether there is a real chance of persecution if the person is returned to the country of nationality”. Logo de seguida afirmou que “The fallacy underlying this approach is the assumption that the conduct of the applicant is uninfluenced by the conduct of the persecutor and that the relevant persecutory conduct is the harm that will be inflicted”, para concluir que “It is the threat of serious harm with its menacing implications that constitutes the persecutory conduct. To determine the issue of real chance without determining whether the modified conduct was influenced by the threat of harm is to fail to consider that issue properly”.[11] No entendimento do tribunal australiano, um ato persecutório traduz-se naquele que ameaça, de forma inequívoca, a integridade da pessoa.

Conclusões

A decisão judicial do High Court of Australia consolidou o entendimento de perseguição na atribuição do estatuto de refugiado como um ato inequivocamente ameaçador da integridade de cada um. Neste sentido, importa referir que os pedidos de proteção internacional, fundamentados na perseguição baseada na orientação sexual têm tido uma atenção crescente por parte das organizações internacionais, mas também por parte dos agentes públicos e decisores judiciais. Na verdade, como demonstrou o caso australiano, a interpretação dos tribunais é vital para garantir um entendimento inequívoco de uma questão tão complexa. Ser alvo de perseguição é por si algo impactante e gerador de medos e ansiedades. No caso da orientação sexual, estamos a referir-nos a indivíduos bastante vulneráveis. Importa, portanto, que as autoridades estejam alerta para a fragilidade e especificidade destes pedidos de proteção internacional. Por outro lado, é de salutar a iniciativa do ACNUR que, reconhecendo a especial vulnerabilidade destas pessoas, vem sublinhar a importância de uma proteção efetiva de casos de manifesta perseguição. A não inclusão, na Convenção de Genebra, da orientação sexual como fator previsto de perseguição não desobriga o Estados recetores a apreciar estes pedidos de asilo. Clarificar os atos que podem caracterizar esta perseguição em concreto – englobando um conjunto significativo de fatores e pelos quais o indivíduo pode não ser diretamente visado no momento atual – assume especial relevância, como de resto ilustram os casos citados neste texto.


[1] Doutor em Estudos Africanos pelo Iscte – Instituto Universitário de Lisboa. Team leader da linha Migração & Género e Sexualidade.

[1]      Knights, Kyle, “The Plight of LGBTU asylum seekers, refugees”, in The New Humanitarian, 7 de maio de 2013, disponível online em https://www.thenewhumanitarian.org/analysis/2013/05/07/plight-lgbti-asylum-seekers-refugees

[2] Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, disponível online em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/convencao_relativa_estatuto_refugiados.pdf [destaque nosso]

[3]      Cory, Connor, “The LGBTQ Asylum Seeker: particular social groups and authentic queer identitities”, in The Georgetown Journal of gender and the Law, vol. XX, pp. 577 – 603, 2019, disponível online em https://www.law.georgetown.edu/gender-journal/wp-content/uploads/sites/20/2019/05/CONNOR-CORY.pdf; Andrade, Vítor, “The british and South African approaches to asylum based on sexual orientation and gender identity”, in Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, 28 (59), 2020, https://doi.org/10.1590/1980-85852503880005906 ; Weßels, Janna, “Sexual Orientation in Refugee Status Determination”, Refugee Studies Centre Working paper Series No. 74, 2011, disponível online em https://www.refworld.org/pdfid/55c9fe604.pdf

[4]      ACNUR, Guidelines on International Protection No. 9: Claims to Refugee Status based on Sexual Orientation and/or Gender Identity within the context of Article 1A(2) of the 1951 Convention and/or its 1967 Protocol relating to the Status of Refugees, 2012, disponível online em https://www.refworld.org/docid/50348afc2.html

[5]      ACNUR, UNHCR Guidance Note on Refugee Claims Relating to Sexual Orientation and Gender Identity, Geneva, 2008, disponível online em https://www.refworld.org/pdfid/48abd5660.pdf

[6]      James Hathaway apud International Commission of Jurists, Refugee Status Claims Based on Sexual Orientation and gender Identity, 2016, p. 81, disponível online em https://www.ilga-europe.org/sites/default/files/practitioners-guide-series-2016-eng.pdf

[7]      ACNUR, Guidelines on International Protection No. 9:…, Cit. p. 7.

[8]      Lokshina, Tanya, Knight, Kyle, “No End to Chechnya’s Violence Anti-Gay Campaign”, Human Rights Watch, 31 de agosto de 2021, disponivel online em https://www.hrw.org/news/2021/08/31/no-end-chechnyas-violent-anti-gay-campaign

[9]      Weßels, Janna, “Sexual Orientation in Refugee Status Determination”, cit. p. 13.

[10]    High Court of Australia, “Appellant S395/2002 v. Minister for Immigration and Multicultural Affairs; Appellant S396/2002 v. Minister for Immigration and Multicultural Affairs”, 2003, disponível online em https://www.refworld.org/cases,AUS_HC,3fd9eca84.html

[11]    High Court of Australia, Appellant S395/2002 v. Minister for Immigration and Multicultural Affairs; Appellant S396/2002 v. Minister for Immigration and Multicultural Affairs, cit., parágrafo 44.


Como citar este artigo:

Garrido, Rui. “A perseguição em razão da orientação sexual”. NOVA Refugee Clinic Blog, Dezembro 2021, disponível em: https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=a-perseguicao-em-razao-da-orientacao-sexual

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About Rui Garrido

Doutor em Estudos Africanos (Iscte – Instituto Universitário de Lisboa) e mestre em Direitos Humanos (Escola de Direito da Universidade do Minho). Team Leader da Linha de Investigação “Migração e Orientação Sexual”.