E-Estónia: Análise de um Governo Digital no Cenário Português

Victória Costa/ December 28, 2021/

Victória Costa[1]

Resumo: O presente artigo visa apresentar o sistema de governo digital da Estónia, considerado um dos mais tecnologicamente desenvolvidos do mundo. Deste modo, pretende-se fazer uma análise entre o sistema digital de administração pública estónio e o sistema português, avaliando como a implantação de um regime similar àquele poderá trazer benefícios à população. Para tal, explorar-se-á os efeitos que este tipo de transposição administrativa tem sobre a qualidade de vida dos cidadãos a partir de uma visualização prática do seu funcionamento atual. Assim, verificar-se-á em quais aspetos o sistema digital estónio pode inspirar o preenchimento das lacunas do sistema digital português.

Palavras-Chave: Tecnologia; Digital; Estónia; Dados; Portugal.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A tecnologia se vem desenvolvendo cada vez mais com o intuito de facilitar e inovar situações do cotidiano. Há várias formas em que pode aperfeiçoar a qualidade de vida, podendo ser utilizada também no âmbito da administração pública. Neste sentido, pretende-se explorar as funcionalidades do sistema digital estónio, o qual se demonstra bastante desenvolvido, e traçar breves notas acerca da evolução tecnológica do país.

Historicamente, o governo digital atual da Estónia tem origem na dissolução da URSS[2], que deixou um país pequeno, com poucos recursos e sem um projeto de nação obrigado a reconstruir seu Estado, que, para tal, encontrou refúgio na tecnologia. Assim, elaborou vários projetos para ensinar a população a utilizar o seu e-governo[3], promovendo a adaptação às facilidades digitais por meio de vários programas, tais como: TigerLeap[4], e-kool[5], ProgeTiger[6] e Academia IT[7]. Desta forma foi possível normalizar o uso da tecnologia e expandir o engajamento e a alfabetização digital necessária.

A anatomia do e-governo estónio consiste numa base virtual central de distribuição de dados entre sistemas informáticos, designadamente, o X-Road[8]. Esta plataforma utiliza tecnologia blockchain[9] e é por meio dela que a administração pública e privada digital da Estónia comunicam dados entre si e com as pessoas, permitindo uma variedade de serviços. Estes, por sua vez, são acessíveis através de um chip[10] incorporado no cartão de identificação, similar ao cartão de cidadão português, mas se distinguem pela variedade e eficácia do que é disponibilizado online, como ver-se-á mais a frente.

  1. Os Princípios para a Recolha de Dados

No final do século XX, a sugestão de um meio de armazenamento digital de dados pessoais não foi recebida com muita confiança pela população local da Estónia, pelo que a solução inicial foi criação de uma base legislativa que tinha por base 3 princípios[11]:

1) Identidade Pessoal Digital: para assegurar a privacidade e confidencialidade das informações dos cidadãos. A cada indivíduo é alocado um cartão pessoal de identificação acompanhado de um chip, sendo este um dos poucos serviços no qual a presença física é necessária (a recolha);

2) Unidade de pedido: limita a ingerência do Estado no acesso de dados, estabelecendo que um documento que já tenha sido solicitado ao cidadão por parte de uma instituição pública não poderá ser objeto de novo pedido por outra instituição, uma vez que já consta nas bases da administração pública. Este critério é sem dúvida um dos mais transformadores, pois, para além de evitar a duplicação dos dados, garante que estes permaneçam atualizados, e proíbe o armazenamento em mais de um espaço. No entanto, caso seja preciso a partilha de tal documento com terceiros, o titular dos dados deverá ser informado, o que nos leva ao terceiro e último princípio;

3) Propriedade dos dados: estabelece que o indivíduo é dono dos seus dados, devendo ser notificado através de seu portal digital sobre quem o acessa. Acresce que, caso seus dados precisem de ser comunicados a terceiros, ser-lhe-á requerida a autorização para o efeito, de modo a impedir a partilha indevida.

Importa destacar que os dois últimos princípios também foram recentemente incorporados no Regulamento Europeu n.º 2016/679, de 27 de abril de 2016, sobre a proteção de dados pessoais, nomeadamente o artigo 5.º, alíneas b) a f), que estabelecem os princípios relativos ao tratamento de dados pessoais.

            E-Residency

Passada esta breve introdução, importa analisar o impacto das referidas tecnologias na vida dos estrangeiros.

O e-residency[12] foi um programa lançado em 2014 pelo governo da Estónia como uma política de integração de estrangeiros e dos negócios que quisessem criar no país. A candidatura ao e-residency é inteiramente online e, mediante deferimento, é concedido um cartão de identificação, que poderá ser levantado numa Embaixada da Estónia escolhida aquando da candidatura. Este cartão possibilita a criação de empresas e o usufruto de outras serviços disponíveis no e-governo.

Por um lado, este programa estimula o crescimento da economia de um país relativamente pequeno e, por outro, permite aos estrangeiros possuírem uma empresa europeia legítima, com acesso a bancos europeus e às facilidades digitais do e-governo estónio. Não obstante as liberdades do programa, é importante ressaltar que o e-residency não atribui residência fiscal aos estrangeiros, mas sim um estatuto digital. Portanto, os aderentes mantêm suas obrigações fiscais originais.

  1. Vantagens

O acesso aos serviços de órgãos públicos e privados digitalmente permite maior agilidade administrativa e desburocratização. Em 2005, foi introduzida pela primeira vez na Estónia a opção do voto online (e-voting[13]), que, apesar de contar no início apenas com 1.9% da população aderente, teve uma adesão de 46% da população nas últimas eleições parlamentares de 2019[14].

Pesquisas estónias[15] apontam uma diferença de tempo significativa na utilização dos serviços digitais para o cumprimento de deveres cívicos, tal como a declaração de impostos de renda: média de tempo para uma pessoa comum é de 11 horas, enquanto no sistema da e-Estónia é estimado de 3 a 5 minutos. Para mais, pode-se abrir uma empresa dentro de 15 minutos, e uma conta bancária em apenas 24 horas.

Uma das principais vantagens do e-governo traduz-se na inexigibilidade da presença do indivíduo no país para a maioria das operações. As três únicas atividades que não podem ser feitas digitalmente na Estónia: (i) contrair casamento; (ii) divorciar-se e (iii) comprar e vender propriedades (e recolher o cartão de identificação, como visto anteriormente). Para quem prefira realizar tais operações presencialmente, não há impedimentos.

Ademais, através desta plataforma, é possível enviar arquivos encriptados para pessoas através número de identificação do respetivo cartão. Trata-se de benefícios imediatos para cidadãos que precisam de enviar digitalmente dados sensíveis, como informações bancárias, contratos ou qualquer documento de natureza confidencial. Especial relevo às relações entre dependentes fiscais que residam em lugares distantes, situação costumeira, sobretudo entre migrantes.

  1. Desvantagens

Apesar de as diligências serem indiscutivelmente mais rápidas e menos onerosas por intermédio da tecnologia, esses programas estão sujeitos a falhas. As dificuldades mais recorrentes são os erros de sistema e internet; ou, a mais temível das situações, ataques cibernéticos, que podem comprometer sensíveis que formam a base de um trabalho, ou no caso da Estónia, a base de um país.

Em 2007, a Estónia viveu pela primeira vez esta situação devido a um ataque cibernético que impossibilitou o acesso de usuários ao seu sistema digital por 22 dias consecutivos[16], o que pôs em causa a questão da proteção de dados para além das fronteiras nacionais. A solução encontrada para prevenir e lutar contra futuros ataques foi reforçar a segurança da plataforma digital e, para manter os dados protegidos, a realização de um backup[17] dos dados mais críticos para assegurar a continuação de operações, na eventual formatação completa. Para tal, o país exportou em cópia o conteúdo para as suas embaixadas, de modo a manter os dados armazenados fora do sistema interno e, com isso, menos provável de serem retidos em simultâneo.

  1. A Problemática Portuguesa

De acordo com o IDES[18], o desempenho digital de cada país pode ser avaliado a partir de quatro indicadores: (i) capital humano, (ii) conectividade, (iii) integração das tecnologias digitais e (iv) serviços públicos digitais. Relativamente aos países da UE[19], uma análise feita em 2021 atribuiu o primeiro lugar à Dinamarca, com uma pontuação geral de 70.1, e o último lugar à Roménia, com apenas 32.9. Por seu turno, a Estónia localiza-se na sétima colocação, com nota 59.4, e Portugal na décima-sexta, com 49.8.

Apesar de globalmente obter uma classificação inferior à da Dinamarca, no que concerne ao indicador “serviços públicos digitais”, a Estónia se sobressai, com a transposição de 99%[20] das operações públicas para a plataforma digital. Observa-se também melhor classificação da Estónia[21] em matéria de capital humano, apresentando ótimas competências digitais entre a população.

No que diz respeito a Portugal[22], verifica-se um bom desempenho em conectividade e um aumento significativo em capital humano devido a um desenvolvimento percentual de especialistas em TIC[23], mas ainda longe de alcançar a média da UE. Ademais, em termos de competências digitais básicas, Portugal regista média inferior aos outros países da UE, sendo a percentagem de empresas portuguesas com nível básico de intensidade digital[24], com 51%, enquanto a média europeia conta 60%.

Não há dúvidas de que Portugal procura aprimorar suas tecnologias, nomeadamente pela criação do e-Portugal[25], plataforma que passou a agregar os serviços antigamente disponibilizados no Portal do Cidadão e no Balcão do Empreendedor, destinados aos cidadãos e às empresas. Contudo, apesar dos muitos serviços públicos disponibilizados, uma pesquisa feita pelo Departamento de Geografia da Universidade do Minho em 2004 verificou que, dos 700 serviços, apenas 20% podiam ser iniciados e completados no site; 30% podiam ser iniciados no site e completados presencialmente junto às entidades responsáveis; e o excedente de 50% são serviços unicamente de divulgação de informação[26]. Atualmente, nota-se que o novo portal não apresenta mudança significativa destes dados, além de não dispor de um nível de satisfação elevado[27].

Outra pesquisa feita pela Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior na Covilhã, em 2018[28], apontou altos níveis de insatisfação relativos ao uso da área do cidadão para a prestação de serviços do SNS[29]. Nos inquéritos destacam-se reclamações sobre problemas do sistema, informação errada e/ou escassa.

Um exemplo prático, na atual situação pandémica, é facto de que as pessoas sem número de utente no SNS não podem enviar digitalmente documentos que informem as instituições sobre infeções passadas, ou vacinas feitas fora do território nacional[30]. Além disso, os contactos disponibilizados nos sites estão, muitas vezes, desatualizados, obrigando ao atendimento presencial para o devido esclarecimento e promovendo uma burocracia desnecessária.

  1. Possíveis soluções

No que diz respeito aos planos de ação do governo para uma melhor transição digital, foi preparado pelo Ministério da Economia e publicado em 2020 no DRE[31] um plano de ação[32], que se aproxima das medidas estónias, entre elas: digitalização de escolas, formação intensiva e especializada na área digital de profissionais, integração da administração pública na “nuvem” ou cloud[33]por meio de ferramentas computacionais, entre outros.

Contempla-se, igualmente, a nível nacional, a incorporação de um programa e-residency[34], similar ao atual programa estónio, em que se pretende criar um conceito de identidade com recurso à chave móvel digital, permitindo que cidadãos, nacionais ou estrangeiros não residentes no país, recorram a serviços públicos portugueses na sua versão online. Um sistema digital de administração pública, tal como o plano apresentado por Portugal e já testado e em prática na Estónia, poderia, para além dos benefícios já destacados, possibilitar aos estrangeiros, antes de migrarem para Portugal, aceder a serviços e requerer documentos antecipadamente, evitando complicações antes de chegarem ao território português.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que não se exclua por completo o perigo advindo de ataques cibernéticos, ou hacks, e que não se possa prever ao certo falhas de sistema, é impreterível reconhecer que dificilmente viveremos sem a tecnologia, pelo que a transformação digital é cada vez mais inevitável, o que torna a sua resistência um ato meramente postergador da eventual adaptação. Paralelamente, não se pode negar que as adequações digitais estão intimamente ligadas à melhor produtividade e qualidade de vida, especialmente no que tange a comparação com os meios antigos de administração que, apesar de confortáveis, não são compatíveis com o progresso das sociedades modernas. 

Pode-se concluir que Portugal precisa de uma reforma nas suas plataformas digitais de serviço, sobretudo para maximizar a operatividade do sistema, uma vez que dispor de facilidades defeituosas apenas desvaloriza as suas supostas utilidades, além de diminuir a credibilidade dos utentes. Destarte, tendo Portugal recursos suficientes, dimensão territorial proporcional e estando razoavelmente engajado no mundo tecnológico, o dilema para que se possa converter numa e-Estônia recai em reeducação e prover a população conforme as demandas da tecnologia em prol da digitalização.


[1] Estudante de Licenciatura em Direito da Nova School of Law. Membro da linha de investigação “Migração e Transformação Digital”, da Nova Refugee Clinic.

[2] União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

[3] Governo Digital. Disponível em: Governo Digital: o Caso da Estônia – Digitalização de serviços públicos

[4] Disponível em: How it all began? From Tiger Leap to digital society – Education Estonia

[5] Disponível em: eKool – e-estoniax.com

[6] Ibidem, nota 5.

[7] Ibidem, nota 5.

[8] Disponível em: X-Road – e-Estonia

[9] Registo digital incorruptível que pode ser programado para registar transações financeiras ou algo que tenha valor virtual, disponível em: Blockchain: a tecnologia que promete mudar o Mundo – Pplware (sapo.pt)

[10] Elemento muito pequeno, feito de um material semicondutor, que possui numerosos circuitos integrados, e que permitem o desenvolvimento de várias funções em dispositivos eletrônicos.

[11] Disponível em: What a digital government looks like | Anna Piperal

[12] Disponível em: e-Residency: como funciona o programa da Estónia para os portugueses? (nomadismodigital.pt)

[13] Disponível em: E-governance saves money and working hours – e-Estonia

[14] Disponível em: Examinando: quais são as lições da Estônia para as eleições no Brasil | Invest | Exame e Como está o voto electrónico na Estónia? Quem critica, pode escolher a opção em papel… – TICtank

[15] Ibidem, nota 13.

[16] Cfr. Joubert, Vincent, Five Years After Estonia’s Cyber Attacks: What have we learned from NATO?, May 2012, Research Division – NATO Defense College, Rome, pg. 1, disponível em: Five Years After Estonia’s Cyber Attacks (ethz.ch)

[17] Cópia.

[18] Índice da Digitalidade da Economia e da Sociedade. Disponível em: Countries’ digitisation performance | Shaping Europe’s digital future (europa.eu)

[19] União Europeia.

[20] Disponível em: Government Cloud – e-Estonia

[21] Ibidem, nota 18.

[22] Ibidem, nota 18.

[23] Tecnologias da Informação e Comunicação.

[24] Incorporação da tecnologia e capacidade de manuseá-la. Disponível em: A necessidade da intensidade tecnológica no mundo digital atual – Integre TI – Notícias

[25] Disponível em: Sobre – ePortugal.gov.pt

[26] Cfr. Nunes, Flávio (2004). A apropriação das tecnologias da informação e da comunicação na sociedade portuguesa. GeoCrítica – Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, vol. VIII, nº 170(40), pp.

[27] Disponível em: https://www.dinheirovivo.pt/empresas/estudo-portugueses-insatisfeitos-com-a-qualidade-dos-servicos-publicos-12773578.html

[28] Cfr. Voionov Guerreiro Caetano, Valentin, Melhoria da Usabilidade do Sistema de Saúde Eletrônico – Área do Cidadão, Maio de 2019, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade da Beira Interior, Covilhã, disponível em: 6979_14791.pdf (ubi.pt)

[29] Serviço nacional de Saúde.

[30] Informação obtida directamente no centro de saúde de sete rios e parcialmente disponível em: Vacinados fora da União Europeia não podem pedir certificado digital? – Polígrafo (sapo.pt)

[31] Diário da República.

[32] Disponível em: Governo lança Plano de Ação para a Transição Digital – ePortugal.gov.pt

[33] Disponível em: O que é a nuvem? | Definição de nuvem | Cloudflare

[34] Ibidem, nota 32.


COMO CITAR ESTE BLOG POST:

Costa, Victória. “E-Estónia: A Análise de um Governo Digital no Cenário Português”. NOVA Refugee Clinic Blog, Dezembro 2021, disponível em: <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=e-estonia-analise-de-um-governo-digital-no-cenario-portugues>

Share this Post

About Victória Costa

É aluna do 4.º ano de licenciatura em Direito e é também membro do Núcleo de Estudantes Internacionais da NOVA School of Law desde 2018.