Os conceitos de “segurança nacional”, “segurança pública” e “ordem pública” associados à aplicação da pena acessória de expulsão

Caio de Mello Ferreira/ April 30, 2021/

Caio de Mello Ferreira[1]

Resumo:

Tendo em conta a utilização frequente de conceitos indeterminados em normas relacionadas à aplicação da pena acessória de expulsão, nomeadamente, no art. 151, nº 3, da Lei de Estrangeiros (Lei nº 23/2007), torna-se premente a necessidade de concretização destes conceitos. Tal necessidade passa por uma averiguação doutrinária e jurisprudencial da matéria em questão, através da qual chegaremos à conclusão de que a “ordem pública” constitui uma realidade normativa geral, enquanto a “segurança pública” (às vezes referida como “segurança interna”) e a “segurança nacional” são, não apenas elementos constitutivos daquela, mas meios indispensáveis para preservá-la. Por outro lado, mediante o escrutínio breve realizado à jurisprudência europeia, depreender-se-á que, se o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) compreende a “segurança pública” e a “segurança nacional” como sendo dois significantes para o mesmo significado, já o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) adota uma distinção entre estes dois conceitos com base na própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).

Palavras-Chaves: Segurança Nacional, Segurança Pública, Ordem Pública, Pena Acessória de Expulsão.


Introdução:

I. Os conceitos indeterminados de “segurança pública”, “ordem pública” e “segurança nacional” aparecem em uma série de diplomas de legislação nacional e internacional, associados, geralmente, a uma regra excludente. O presente artigo debruça-se sobre as possíveis diferenças semânticas entre os referidos conceitos, sendo o seu objetivo final fazer uma breve reflexão sobre os mesmos quando servem de base legal a uma expulsão determinada por autoridade judicial, maxime uma pena acessória de expulsão.

Ordem Pública:

II. A “ordem pública” pode ser analisada a partir de seis visões diferentes: (1) sob a ótica do Direito Administrativo; (2) na perspectiva da Economia; (3) com base na ideia de proteção de bens materiais pelo Estado; (4) associada à manutenção da ordem moral; (5) tendo em vista a preservação de uma vida minimamente digna; e (6) em conexão com a ordem social[2].

III. Uma primeira observação que pode ser feita é de que se trata de um conceito atrelado a necessidades essenciais ao pleno funcionamento do Estado e à manutenção do Estado de Direito. Por conta destas características, é usual encontrarmos o conceito em questão ligado a exigências de “segurança pública”, “segurança nacional”, entre outras[3]. Todos os significantes possuem significados conexos, contudo isso não impede a existência de diferenças semânticas entre eles.

IV. A “ordem pública” também pode ser fragmentada em cinco diferentes categorias de ordem, correspondendo a cada uma delas uma realidade social específica[4]: (1) “ordem social”, (2) “ordem política”, (3) “ordem cultural”, (4) “ordem económica” e (5) “ordem jurídica”. Qualquer impacto ou desequilíbrio numa dessas ordens é capaz de acarretar o estado de insegurança pública.

V. Na economia deste artigo, damos prioridade à categoria de “ordem política”. Esta se liga ao equilíbrio estadual, ou seja, à preservação de instituições democráticas e de soberania do Estado, cujo corolário consiste na defesa da segurança interna e externa[5]

VI. A preservação da segurança externa visa alcançar a igualdade jurídica na lógica da sociedade internacional, conectando-se ao tema da existência política do Estado. Por outro lado, a segurança interna tem a ver com objetivos nacionais, e só pode ser entendida numa lógica doméstica, i.e, cada Estado traçará seu escopo do que entende por segurança interna[6]. Mas o que é exatamente “segurança”?

Segurança Nacional:

VII. O conceito de “segurança nacional” possui os mesmos óbices interpretativos apresentados pelo conceito de “ordem pública”. Ambos não são auto-evidentes, não são de fácil concretização e são de difícil dissociação.

VIII. Quando falamos de “segurança”, referimo-nos à proteção da existência ou à preservação de algo[7]. Ao incorporar o qualificativo “nacional”, a proteção visa um sujeito muito específico, o Estado de base territorial. Assim, a “segurança nacional” há de “fornecer a principal justificativa para o exercício da soberania e o monopólio estatal do uso legítimo de meios de força”[8]. A “segurança nacional” pode comportar  a ameaça interna ou externa. A “segurança” é o fim e o meio de preservação da ordem pública.

IX. Por outro lado, a segurança nacional pode ser entendida em duas perspectivas distintas: segurança do Estado e segurança do cidadão. A possível conflitualidade entre estas duas perspectivas[9] poderá corresponder a situações complexas sempre que, para assegurar a vertente pública, se imponha a restrição de liberdades e direitos fundamentais do indivíduo [10].

X. Outra questão relevante reside na delimitação precisa da finalidade perseguida para a concretização do conceito. Deve procurar-se a ameaça que constitui ou pode constituir um risco para a integridade da segurança nacional[11], e não tanto a definição de seu conteúdo essencial. Um exemplo é o terrorismo, que, na atualidade, é uma ameaça transfronteiriça à “segurança nacional”, mas teve, ao longo dos tempos[12], significados diversos e, ainda hoje, difusos[13].

XI. Por fim, para uma melhor definição do conceito em questão, será sempre necessário recorrer à legislação interna mais relevante. No caso português, o Instituto de Defesa Nacional define a “segurança nacional” num sentido coletivo, que exclui a dimensão individual[14].

Segurança Pública:

XII. Há uma querela doutrinária e jurisprudencial acerca da diferença entre “segurança pública” e “segurança nacional”.

XIII. São duas as posições dominantes. A primeira entende a “segurança pública” como a preservação da ordem pública interna[15], isto é, a ordem de convivência social. A segunda sustenta que a “segurança pública” é parte integrante da ordem pública[16], privilegiando o corolário da defesa externa.

XIV. Todavia, no âmbito do direito da União Europeia, parece não  haver diferença entre uma perspectiva interna e externa de “segurança pública”.  Alcançamos esta conclusão analisando o caso Baden-Wurttemberg[17]. O TJUE concretiza o conceito de “segurança nacional” arrimando-se em jurisprudência que se ocupa apenas da interpretação do conceito de  “segurança pública”. Aliás, a Diretiva 2004/38/CE, que serve de referência normativa àquela jurisprudência, não menciona, em nenhum momento, a noção de “segurança nacional”[18]. Vale ressaltar ainda que a Directiva 2004/83/CE, aplicável ao caso citado, não faz qualquer referência  ao termo “segurança pública”.

XV. Além disso, podemos referir que mesmo quando está em causa um risco contra os  interesses militares do Estado e, consequentemente, nos encontramos mais próximos da lógica de preservação da soberania estadual (segurança nacional), o TJUE toma por critério normativo o conceito de “segurança pública” (caso Fahimian[19]).

XVI. Diversamente, a CEDH faz uma clara distinção entre “segurança pública” e “segurança nacional”. No caso C.G and Others v. Bulgaria[20], o TEDH não considera o tráfico de estupefacientes uma ameaça à “segurança nacional”, justificativa da expulsão do agente. Todavia, se  estivéssemos perante o TJUE, o mesmo crime constituiria um risco para a “segurança pública”, como se demonstra no Acórdão  Tsakouridis[21].

Lei de Estrangeiros:

XVII. Com o intuito de aproximar os direitos europeu e nacional,  iremos analisar como os conceitos indeterminados objeto deste artigo deveriam ser aplicados, no âmbito  do art. 151º, nº 3, da Lei de Estrangeiros. Tarefa que se mostra desafiante, uma vez que os nossos tribunais superiores não tiveram ainda a oportunidade de se pronunciar sobre a matéria em questão. 

XVIII. Em termos de admissibilidade de aplicação da pena acessória de expulsão, à luz do referido artigo, deve estar em causa (1) um cidadão estrangeiro, (2) titular de  uma autorização de residência permanente[22], (3) que tenha sido condenado pela prática de  um crime doloso em pena superior a um ano de prisão,  (4) revelando-se a conduta do agente um perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional [23][24].

XIX. Em primeira linha, devemos mencionar os três critérios adoptados pela  jurisprudência do TJUE[25], dois  especiais, um  geral. Um dos critérios especiais diz respeito ao caso Baden-Wurttemberg[26], no qual o TJUE considera  que a associação a grupos terroristas constitui uma ameaça à segurança nacional, tendo por base o “considerando” n.º  28, da Directiva 2004/83/CE, e a lista anexa à Posição Comum 2001/931/PESC, que contém as organizações tidas como terroristas.

XX. O segundo critério especial é atinente ao caso Tsakouridis[27], afirmando aí o Tribunal  que o tráfico ilícito de drogas constitui uma ameaça à segurança, pois potencia a toxicodependência e esta põe em risco a tranquilidade e a segurança física da população.

XXI. O critério geral depreende-se do Acórdão do Tribunal de Justiça,  de 22 de maio de 2012 (Proc. C-348/09). Partindo da constatação de os Estados-Membros, não obstante lhes caber per se a definição das razões imperativas de segurança pública, não estarem autorizados com base nesta prerrogativa nacional a ignorar o parecer das instituições da União[28], o TJUE reconduz aquele critério geral à infração penal que constitui em si uma violação especialmente grave de um interesse fundamental da sociedade, correspondendo essa infração às que constam do art. 83º, nº1, segundo parágrafo, do TFUE[29].

XXII. O TEDH, tratando-se da pertença ou associação a organizações terroristas,  perfilha a mesma conceção de ameaça à segurança nacional que o TJUE, como nos mostra o caso Muhammad and Muhammad v. Romania, 2020, fazendo uma ressalva aos casos em que o defensor do arguido não tenha tido acesso aos documentos (mesmo os confidenciais) que materializam a acusação feita[30].

XXIII. A questão torna-se mais problemática quando averiguamos o caso do tráfico de estupefacientes. O TEDH não considera esta infração penal como uma ameaça à segurança nacional, uma vez que o tráfico pode constituir um risco à salubridade pública, que é um dos elementos constitutivos da ordem pública, mas não um perigo para a integridade do Estado[31].

XXIV. Na ocasião da aplicação do art. 151.º, n.º 3, da Lei de Estrangeiros, os tribunais nacionais teriam, em alternativa, duas possibilidades: (1) aplicar o critério geral do TJUE atrás referido, já que estão em causa razões imperativas de segurança pública; ou (2) servir-se do  critério do TEDH, circunscrito à ameaça, especialmente, grave representada pelas organizações terroristas, mas com orientação diversa no caso do tráfico de estupefacientes. O sobredito artigo, na sua letra, faz depender a expulsão de um perigo ou ameaça que qualifica de “grave”. Portanto, a ameaça à segurança nacional deve ser de tal forma intensa que a expulsão se torne imperiosa. Tendemos a considerar – tal como o TEDH – que o crime de tráfico de estupefacientes, na sua modalidade mais comum, não constitui um motivo suficiente de expulsão, salvo se ele assumir a dimensão transfronteiriça a que se refere o art. 83.º, n.º 1, primeiro parágrafo, TFUE.

Considerações finais:

XXV. Tendo em conta a escassa jurisprudência nacional acerca da concretização dos conceitos de “segurança nacional”, “segurança pública” e “ordem pública”, é imperioso um olhar atento à jurisprudência europeia, em particular à do TJUE, designadamente em ordem a uma aplicação adequada do artigo 151.º, n.º 3, da Lei de Estrangeiros. Ademais, parece-nos evidente que o art. 83.º, n.º 1, segundo parágrafo do TFUE, utilizado como base legal do critério geral do TJUE, deve ser interpretado em conjugação com o primeiro parágrafo, restringindo, assim, a aplicação do referido critério aos casos de uma ameaça à segurança (pública ou nacional) com dimensão transfronteiriça.

XXVI. Por fim, convirá atender às definições constantes da legislação interna. Sem esquecer o contributo da doutrina, ainda que esta apresente, por vezes, diversos significantes para o mesmo ou idêntico significado.


FORMA DE CITAR:
C. M. FERREIRA, Os conceitos de “segurança nacional”, “segurança pública” e “ordem pública” associados à aplicação da pena acessória de expulsão, NOVA Refugee Clinic Blog, April 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=os-conceitos-de-seguranca-nacional-seguranca-publica-e-ordem-publica-associados-a-aplicacao-da-pena-acessoria-de-expulsao>


[1] Estudante da Licenciatura em Direito, na NOVA School of Law

[2]  DELGADO, José Augusto; A Ordem Pública como Fator de Segurança, pp. 2-3

[3] Council of Bars & Law Societies of Europe; CCBE RECOMMENDATIONS ON THE PROTECTION OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN THE CONTEXT OF ‘NATIONAL SECURITY, 2019, p. 9

[4] DELGADO, José Augusto; op. cit.,, p. 9

[5] Ibidem,  p. 14

[6] Ibidem, p. 15

[7] CEPIK, Marco; “Segurança Nacional e Segurança Humana: problemas conceituais e consequências políticas”, em  Security and Defense Studies Review, Vol. 1 Spring 2001; p.2

[8] Ibidem, p. 3

[9]  Council of Bars & Law Societies of Europe; op. cit., p. 2

[10] Para um caso claro desse embate cf. Muhammad and Muhammad v. Romania [GC], 2020 do TEDH

[11] CEPIK, Marco; op. cit., p. 4

[12] Rapoport, David, C. ‘Four Waves or Rebel Terror and September 11’, Antropoethics, vol. 8, no. 1 (Spring/Summer 2002).

[13] Bruce, Gregor. ‘Definition of Terrorism – Social and Political Effects’, Journal of Military and Veterans’ Health, vol. 21, no. 2. (May 2013), pp. 26-30

[14] Cfr. comentário n.º 15 ao art. 6º da Lei de Estrangeiros: https://sites.google.com/site/leximigratoria/artigo-6-o-controlo-fronteirico?authuser=0

[15] LIMA, Renato Sérgio de; SILVA, Guilherme Amorim Campos da;  OLIVEIRA, Priscilla Soares de; “Segurança pública e ordem pública: apropriação jurídica das expressões à luz da legislação, doutrina e jurisprudência pátrios”; em Revista Brasileira de Segurança Pública, Vol. 7; Fev/Mar 2013; p 62

[16] Ibidem, p. 63

[17] Acórdão do Tribunal de Justiça,de 24 de junho de 2015 (Proc. C-373/13)

[18] Ibidem,§ 76 e 78.

[19] Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de abril de 2017, § 39 (Proc. C-544/15).

[20] CASE OF C.G. AND OTHERS v. BULGARIA no. 1365/07.

[21] Acórdão do Tribunal de Justiça, de 23 de novembro de 2010, § 46 e 47 (Proc. C-145/09). Para uma lista não exaustiva de situações que podem ser relevantes para a concretização do risco à segurança pública cf. § 44, do mesmo Acórdão.

[22] Cf. art. 76.º, ns.º 1 e 2, da Lei de Estrangeiros

[23] Para a definição de defesa nacional cf. art. 1º, n.º 1 da Lei n.º 29/82, de 11 de dezembro

[24] Para maior desenvolvimento sobre o tema cf. VARELA, João, “A Pena de Expulsão à Luz da Lei de Imigração”, em CEDIS Working Papers, Nº 1, Fevereiro 2021, pp. 13-15

[25] Ao adentrar em “território” da União Europeia , devemos  submeter-nos ao cânone interpretativo do TJUE, que se desdobra nos elementos seguintes: (1) todas as versões linguísticas do diploma de direito derivado aplicável in casu têm idêntica relevância normativa (elemento literal); (2) prevalência do elemento teleológico-objetivo; (3) análise integrada das normas europeia e interna in casu relevantes (elemento sistemático); (4) negação de valor jurídico-vinculativo aos “considerandos”; (5) ponderação das consequências práticas da decisão a adoptar (elemento consequencial).

[26] Acórdão do Tribunal de Justiça, de 24 de junho de 2015 (Proc. C-373/13).

[27] Acórdão do Tribunal de Justiça, de 23 de novembro de 2010, § 46 e 47 (Proc. C-145/09).

[28] Acórdão do Tribunal de Justiça, de 22 de maio de 2012, § 22 e 23 (Proc. C-348/09).

[29] Ibidem, § 28.

[30] Muhammad and Muhammad v. Romania [GC], 2020, § 127 e 139.

[31] C.G v. Bulgaria, § 43.

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About Caio de Mello Ferreira

Licenciando em Direito na Nova School of Law (finalista). Realizou um estágio extracurricular na Sociedade de Advogados Jaime Roriz e na Embaixada do Kosovo em Lisboa.