Algumas notas acerca do indeferimento do pedido de asilo de pessoas LGBTI+

Rui Garrido/ April 28, 2021/

Rui Garrido[1]

Resumo: A perseguição de pessoas com base na sua orientação sexual tem merecido uma crescente atenção dos organismos internacionais. No entanto, alguns Estados tem tido uma abordagem que pode não observar as especificidades de um pedido de asilo desta natureza. Partindo de notícias que reportam ao indeferimento de pedidos de asilo no Reino Unido, esta reflexão procura olhar para a complexidade destes pedidos de asilo, cruzando-os com as boas práticas internacionais.

Palavras-chave: Proteção Internacional; orientação sexual; LGBTI; proteção; Uganda.


No final de fevereiro de 2021, a cadeia noticiosa britânica BBC dava conta do caso de dois cidadãos e uma cidadã do Uganda com ordem de expulsão, após os seus respetivos pedidos de asilo terem sido rejeitados pelos serviços de imigração britânicos[2]. Estes pedidos fundamentaram-se na alegada perseguição com base na orientação sexual no país de origem: o Uganda. Não sendo possível aceder aos pedidos de asilo e à sua fundamentação, importa, contudo, clarificar a situação das pessoas LGBTI+ no Uganda, bem como elencar as boas práticas no que concerne a pedidos de asilo fundamentados no receio de perseguição pela orientação sexual.

1. A situação das pessoas LGBTI no Uganda

O Uganda entrou nos holofotes da comunicação social internacional em 2009, quando foi apresentado no seu parlamento um projeto de lei que pretendia punir a homossexualidade e que previa a pena de morte para o crime de “homossexualidade agravada”[3]. Após pressão internacional, a pena de morte foi retirada desta proposta, sendo lei aprovada em final de 2013 e promulgada pelo Presidente Museveni em fevereiro de 2014. Importa referir ainda que o Uganda, antes desta proposta draconiana, já criminalizava os atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo, de acordo com o Código Penal de 1950. Dispõe o artigo 145.º do Código Penal que:

Any person who— has carnal knowledge of any person against the order of nature; has carnal knowledge of an animal; or permits a male person to have carnal knowledge of him or her against the order of nature, commits an offence and is liable to imprisonment for life[4].

Esta norma é bastante semelhante a outras encontradas em países africanos e asiáticos que estiveram sob domínio colonial britânico[5]. Na verdade, como ilustra o relatório anual da ILGA, a criminalização da homossexualidade no continente africano tem uma correspondência naquelas que foram as potências coloniais que ocuparam aqueles territórios. E esta legislação penal tem sido aplicada pelos tribunais nacionais nos tempos mais recentes, quer no Uganda[6], quer noutros países africanos com legislação semelhante.

No caso do Uganda, o The Anti-Homosexuality Act 2014 (AHA)[7] teve como resultado uma escalada da violência contra pessoas LGBTI+. Várias pessoas viram-se forçadas a abandonar o país em busca de segurança depois de perseguidas e temerem pela vida[8]. Apesar de a AHA ter sido declarada nula pelo Tribunal Constitucional do Uganda, em agosto de 2014, tal não se traduziu numa melhoria da situação das minorias no país, sucedendo-se a homofobia, as perseguições, a violência e, em alguns casos, a morte.[9] Em outubro de 2019, os meios de comunicação internacionais reportavam que o Uganda pretendia voltar a discutir no parlamento um novo projeto de lei para criminalizar a homossexualidade[10].

2. Asilo e a questão LGBTI+

A Convenção de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados não prevê a perseguição com base na orientação sexual e/ou na identidade de género. Pode ler-se no artigo 1.º A, alínea 2, que o estatuto de refugiado se aplica para quem:

“ […] receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a protecção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar”[11].

No entanto, tal não significa que as pessoas LGBTI+ não sejam elegíveis para beneficiarem de asilo. Neste sentido, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tem procurado clarificar, através de notas e diretrizes, como proceder em caso de pedido de refúgio fundado na perseguição com base na orientação sexual e/ou identidade de género.

Assim, em 2012 foram adotadas as Diretrizes do ACNUR n. º9[12], compilando as boas práticas para este tipo de pedidos. Não é nosso objetivo debruçarmo-nos sobre o documento na sua totalidade, mas apenas nos fatores de perseguição, em específico a existência de legislação que criminaliza as relações entre pessoas do mesmo sexo.

O ACNUR afirma que é consensual que tais dispositivos penais são discriminatórios e violam padrões internacionais de direitos humanos. Este tipo de legislação, muito embora criminalize o ato sexual anal – e portanto, pode ser praticado tanto por homens, como por mulheres, conforme se verifica no artigo 145 do Código Penal do Uganda supracitado – a verdade é que estas normas têm sido instrumentalizadas para perseguir reiteradamente homens gays. Mais ainda, quer no Uganda, quer em outros Estados africanos com legislação similar e um discurso homofóbico mainstream, associações e indivíduos têm sido perseguidos com base nestas normas, com a justificação de que a homossexualidade é proibida naqueles países e, portanto, a manifestação pública de afetos ou o associativismo LGBTI+ são perseguidos pelos agentes do Estados. O ACNUR reconhece esta particularidade e afirma que é necessário atender aos casos de ativistas LGBTI+ que pedem asilo fundamentado num receio de perseguição com base na orientação sexual, sem que isso se traduza que eles mesmos tenham uma orientação sexual e/ou uma identidade de género diversa. Reconhece ainda o ACNUR que, nos casos em que a pessoa se defina como LGBTI+, no que tange à legislação penal, o receio de sofrer perseguição poderá ser aferido não apenas pela aplicação da lei naquele caso concreto, mas também pelo receio de vir a ser perseguido e condenado por essa mesma legislação.

É igualmente preocupante que em alguns casos – e o Uganda é disso exemplo, concretamente no caso Cris Mubiru – homens suspeitos de terem tido contacto sexual com outros homens serem sujeitos a teste médicos para averiguação dessa atividade. No caso Cris Mubiru, o réu era acusado de contacto homossexual com menor e foi sujeito a exames periciais de análise ao pénis e ao ânus[13], tendo sido declarado culpado e sentenciado a pena de prisão por crimes “contra a natureza”. A Human Rights Watch tem denunciado este tipo de prática como uma forma de tortura e tratamento degradante sem qualquer rigor científico reconhecido[14]. O Comité da ONU contra a Tortura, no relatório de avaliação sobre a Tunísia[15] (CAT/C/TUN/CO/3), em 2016, condenou o uso destes exames médicos pelo Estado tunisino e recomendou a reforma legislativa no sentido de despenalizar as relações sexuais entre adultos do mesmo sexo, bem como a proibição de qualquer exame médico-legal para aferir qualquer tipo de contacto sexual consensual entre adultos do mesmo sexo. No Uganda, como verificamos, estes exames médico-legais são uma prática recorrente e são utilizados como prova em tribunal dos crimes imputados. Portanto, o ambiente de perseguição a pessoas LGBTI+ no país é real, o que coloca estas pessoas em particular vulnerabilidade e marginalidade.

3. Considerações finais

Assim, em jeito de conclusão, um pedido de asilo com base na orientação sexual assume uma grande complexidade, que impõe aos serviços de imigração dos países de acolhimento um cuidado acrescido na análise destes pedidos. A notícia da BBC, que foi o ponto de partida desta reflexão, torna-se bastante inquietante na medida em que aquelas três pessoas serão devolvidas a um país onde a sua segurança não estará assegurada.

O ambiente social, político e jurídico do Uganda não garante que estas pessoas não serão perseguidas quando retornarem ao seu país de origem. Mais ainda, o simples facto de estar online a notícia de que estas pessoas requereram asilo com base na orientação sexual permite que outros indivíduos no Uganda possam tomar conhecimento das identidades destas pessoas e despoletar em si perseguição.

Nestes casos e em outros similares, torna-se necessário ter ainda presente que, mesmo que um pedido de refúgio fundamentado na perseguição pela orientação sexual e/ou identidade de género possa não caber no âmbito da Convenção de Genebra de 1951, tal não significa que a pessoa deva, automaticamente, ser reenviada para o seu país de origem. Caso não estejam reunidas as condições de segurança ou haja ameaça à vida ou outras violações graves de direitos humanos, deverá ser considerada a opção pela concessão de uma proteção complementar, como o é a proteção subsidiária.


FORMA DE CITAR:
R. GARRIDO, Algumas notas acerca do indeferimento do pedido de asilo de pessoas LGBTI+, NOVA Refugee Clinic Blog, Abril 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=algumas-notas-acerca-do-indeferimento-do-pedido-de-asilo-de-pessoas-lgbti>


[1] Doutor em Estudos Africanos (Iscte – Instituto Universitário de Lisboa) e mestre em Direitos Humanos (Escola de Direito da Universidade do Minho). Team Leader da Linha de Investigação “Migração e Orientação Sexual”.

[2] Thomas Magill & Bethan Bell (2021, 27 de fevereiro), “Gay Ugandan asylum seekers ‘in danger if sent home’”, BBC, disponivel online em https://www.bbc.com/news/uk-england-london-56182769#16162703398552&{sender:offer-0-L2NFx,displayMode:inline,recipient:opener,event:resize,params:{height:410,iframeId:offer-0-L2NFx}} [07/04/2021]

[3] Human Rights Watch (2009, 15 de outubro), “Uganda. ‘Anti-Homosexuality’ Bill Threatens Liberties and Human Rights Defenders”, Human Rights Watch, disponível online em https://www.hrw.org/news/2009/10/15/uganda-anti-homosexuality-bill-threatens-liberties-and-human-rights-defenders [22/04/2021].

[4] Artigo 145º do Código Penal do Uganda de 1950, disponível em https://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/ELECTRONIC/75312/100698/F-852255241/UGA75312.pdf [20/04/2021].

[5] Gustavo Santos & MAtthew Waites (2019), “Comparative colonialisms for queer analysis: comparing british and Portuguese colonial legacies for same-sex sexualities and gender diversity in Africa – setting a transnational research agenda”, International Review of Sociology, 20 (2), disponível online em https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03906701.2019.1641277 [20/04/2021].

[6] Daily Monitor (2015, 8 de setembro), “Former sports manager Mubiru convicted of sodomy”, Daily Monitor, disponível online em https://www.monitor.co.ug/uganda/news/national/former-sports-manager-mubiru-convicted-of-sodomy-1623320 [24/04/2021].

[7] Este diploma pode ser consultado em: https://www.refworld.org/pdfid/530c4bc64.pdf

[8] Rui Garrido (2016), “Ativismo LGBT num campo político hostil – uma leitura dos movimentos de ativismo no Uganda”, Cadernos de Estudos Africanos, 31, disponível online em https://journals.openedition.org/cea/2031 [24/04/2021].

[9] Human Rights Watch (2019, 15 de outubro), “Uganda: Brutal Killing of Gay Activist”, Human Rights Watch, disponível online em https://www.hrw.org/news/2019/10/15/uganda-brutal-killing-gay-activist [21/04/2021].

[10] Nita Bhalla (2019, 10 de outubro). “Uganda plans bill imposing death penalty for gay sex”, Reuters, disponível online em https://www.reuters.com/article/uganda-lgbt-rights-idAFL3N26U2IX [21/04/2021].

[11] Artigo 1 A, alínea 2) da Convenção de Genebra de 1957 relativa ao Estatuto dos Refugiados. Disponível em convencao_relativa_estatuto_refugiados.pdf (ministeriopublico.pt).[20/04/2021].

[12] United Nations High Commissioner for Refugees (2012), “Guidelines on International Protection no. 9: Claims to Refugee Status based on Sexual Orientation and/or Gender Identity within the context of Article 1A(2) of the 1951 Convention and/or its 1967 Protocol relating to the Statues of Refugees”, UNHCR, disponível online em https://www.unhcr.org/50ae466f9.pdf [19/04/2021].

[13] Human Rights Awareness and Promotion Forum (2015), “Summary and legal Analysis on the Chris Mubiru Judgment”, disponível online em https://hrapf.org/images/legalanalyses/15_09_21_hrapf_legal_analysis_of_the_chris_mubiru_case_final.pdf [22/04/2021].

[14] Human Rights Watch (2016, 12 de julho), “Dignity Debased: Forced Anal Examination in Homosexuality Prosecutions”, Human Rights Watch, disponível online em https://www.hrw.org/report/2016/07/12/dignity-debased/forced-anal-examinations-homosexuality-prosecutions [23/04/2021].

[15] Comité Contra a Tortura (2016, 10 de junho), “Concluding observations on the third periodic report of Tunisia (CAT/C/TUN/CO/3)”, disponível online em https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhsn%2fe41KqfmX3PaT%2bm8PgpNo5NJkCle3LmgsB0Zj6X3G7hKryOYjYgCjxbJTJCgFX5P711QBTOiq9CnTmai4iQRUPseym8nKNhe0avaiLz%2b1C  [23/04/2021].]

Share this Post

About Rui Garrido

Doutor em Estudos Africanos (Iscte – Instituto Universitário de Lisboa) e mestre em Direitos Humanos (Escola de Direito da Universidade do Minho). Team Leader da Linha de Investigação “Migração e Orientação Sexual”.