Acesso à educação das crianças refugiadas em Portugal: uma era de avanços e desafios

Maria Mariana Moura/ September 10, 2020/

Maria Mariana Soares de Moura [1]

Durante este mês de agosto, as notícias dos jornais exclamavam e comemoravam o fato de que o grupo de menores desacompanhados não irão precisar de certificado de habilitações e terão garantidos apoios sociais[2].Todos comemoramos com fervor. Mas, por quê, se supostamente o Direito ao ensino e à igualdade de oportunidades na formação escolar é universal, obrigatório, gratuito e está garantido a todos os cidadãos na Constituição da República Portuguesa[3] e também em convenções internacionais sobre o tema?

A notícia a que referimos acima trata de medidas adotadas pelo Governo de Portugal para que os menores não acompanhados que recentemente foram transferidos dos campos de refugiados na Grécia, pudessem ter assegurado em Portugal o ensino básico, universal, obrigatório e gratuito, sem que fossem a eles exigido um reconhecimento dos seus certificado de habilitações ou outros documentos para usufruírem do ensino escolar.

Por si, a necessidade de implementar uma abertura desta natureza já denuncia um problema: as pessoas em situação de vulnerabilidade e enquadradas como requerentes de asilo ou refugiadas geralmente não conseguem trazer consigo para o país de destino todos os documentos que normalmente são exigidos para realizar a matrícula dos menores, o que deveria, automaticamente, fazer com que as Escolas, nestes casos, flexibilizassem a necessidade de apresentação dos documentos para o exercício pleno do direito à educação dos menores nesta situação.

 O problema se agrava quando, em situações como estas, as crianças chegam ao país desacompanhadas e, consequentemente, sem qualquer amparo documental no que diz respeito ao seu percurso escolar. Por isto, louvável a medida governamental que “abre as portas” ao percurso da educação destes menores. Os aplausos ao benefício concedido a estas crianças, porém, nem sempre podem ser estendidos a outras que, em situação semelhante, requereram o acesso ao sistema educacional português.

A razão que nos leva a questionar a igualdade de oportunidades de entrada ao sistema educacional português diz respeito aos desafios nos próprios sistemas escolares na integração e aceitação das crianças migrantes nas suas instalações.

O Despacho Normativo n.º 6/2018 do Secretário de Estado da Educação estabelece os procedimentos da matrícula no sistema escolar e exige, por exemplo, no ato de matrícula, o recolhimento do “número de identificação fiscal (NIF) de todas as crianças e alunos, no caso de o terem atribuído, os dados relativos à composição do agregado familiar por últimos validados pela Autoridade Tributária, o número de utente do Serviço Nacional de Saúde (NSNS), o número de cartão de utente de saúde/beneficiário, a identificação da entidade e o número relativo ao subsistema de saúde, se aplicável, e o número de identificação da segurança social (NISS) das crianças”[4].

A quantidade de documentos que não são adquiridos com tanta facilidade pelos pais ou pelas crianças que se encontram em movimento, tanto as que proveem de imigração irregular ou de situações de refúgio acabam por ser um empecilho ao acesso à educação e, mesmo que admitidas na escola, o serviço social que suporta custos como alimentação e recursos materiais para o desenvolvimento escolar da criança não pode ser utilizado, deixando-as, mais uma vez, em situação de vulnerabilidade.

Isto é especialmente relevante porque o acesso a materiais escolares ou mesmo a seguros escolares, que normalmente são fornecidos pelo Estado, pode ser negado aos jovens migrantes ou refugiados em razão da ausência documentação. A este nível, a falta de recursos socioeconómicos aliada a ausência de respostas adequadas e eficientes das entidades públicas dificultam a integração das crianças.

O que se alerta aqui é que apesar de a exigência de documentos e reconhecimentos de habilitações ser importante para o controle dos serviços administrativos das instituições de ensino, deve haver um limite para a necessidade de apresentação conforme a situação da criança. É exatamente por esta razão que quando não existem os documentos, a legislação portuguesa flexibiliza a exigência para que o acesso esteja garantido. Mesmo assim, é preciso sempre que a administração das escolas cumpra esta determinação e, de forma nenhuma, imponha mais dificuldades diante da ausência de documentos[5].

Quando o menor se encontra em uma situação de mobilidade como os requerentes de asilo, em todas as hipóteses, é razoável que não sejam a elas exigidas dada a vulnerabilidade da sua condição. Além disso, imagina-se que esta integração seja, por si, completamente difícil, sobretudo porque na maior parte dos casos, passa-se por uma barreira de adaptação que é cultural, linguística, financeira e que nem todas as escolas do sistema português de educação estão preparadas para receber. Assim, quanto menos burocrático for o acesso, melhor será para o interesse do menor.  

O que importa destacar é que com a ausência dos apoios e do acompanhamento necessário, o direito à educação universal acaba por ser apenas uma bonita declaração constitucional que não encontra efetividade prática para as crianças refugiadas. Para evitar isto, também precisamos considerar que tem havido um grande esforço das entidades públicas para valorizar o panorama do acesso à educação em Portugal – como se pode ver pela medida anunciada neste último mês –, o que se reflete em diversos programas, ações e iniciativas dirigidas às crianças.

Os desafios para a educação das crianças são muitos e exigem ainda mais contornos inovadores quando observados sob o contexto dos requerentes de asilo: o caminho é árduo, mas deve ser seguido na direção da efetividade do direito à educação e da garantia da dignidade de cada criança.


[1] Maria Mariana Soares de Moura é membro da Nova Refugee Legal Clinic, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa, investigadora do CEDIS e doutoranda da Nova School of Law.

[2]VIANA, Clara. Menores refugiados não vão precisar de certificado de habilitações e têm garantidos apoios sociais. Público. Lisboa, 19 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.publico.pt/2020/08/19/sociedade/noticia/menores-refugiados-nao-vao-precisar-certificado-habilitacoes-garantidos-apoios-sociais-1928282?fbclid=IwAR1WgPn4vJVe6cZgo8tXbE66hWQjgwh0kDEk13RKEJFwolUSNCfiptXVWpg. Acesso em: 19 de agosto de 2020.

[3] Artigo 74.º – (Ensino) 1. O Estado reconhece e garante a todos os cidadãos o direito ao ensino e à igualdade de oportunidades na formação escolar.  2. O Estado deve modificar o ensino de modo a superar a sua função conservadora da divisão social do trabalho.   3. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado:  a) Assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito; [….].PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa de 1976. Disponível em: https://dre.pt/legislacao-consolidada/-/lc/34520775/view.

[4] PORTUGAL. Despacho Normativo n.º 6/2018. Gabinetes da Secretária de Estado Adjunta e da Educação e do Secretário de Estado da Educação, 10 de abril de 2018. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/home/-/dre/115093805/details/2/maximized?serie=II&parte_filter=31&dreId=115093775. Acesso em: 24 ago. 2020.   

[5]Isto pode ser visto na legislação portuguesa que representa o esforço do Estado em flexibilizar essas situações. A existência do Decreto-Lei PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 227/2005. Art. 10º, 1: Inexistência de comprovativo de habilitações. 1 – Quando não seja possível instruir o pedido de equivalência por ausência de documento comprovativo das habilitações adquiridas pelo requerente, pode, a título excepcional e por motivos devidamente fundamentados, ser autorizada a substituição daquele documento por uma declaração, sob compromisso de honra, do próprio, do encarregado de educação do requerente ou de quem o substitua, no caso de aquele ser menor de idade, que indique a habilitação concluída. Disponível em: https://dre.pt/pesquisa/-/search/469001/details/maximized. Acesso em: 9 set. 2020.  

Share this Post

About Maria Mariana Moura

Doutoranda em Direito na NOVA School of Law, é Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa, advogada e licenciada em Direito pela Universidade Federal do Acre (Brasil).