O conceito de “refugiado climático” à luz do direito internacional

Renata Jorge Gomes/ September 23, 2020/

Renata Jorge Gomes[1]

O tema das alterações climáticas tem sido um dos mais estudados e debatidos no século XXI, transformando-se de matéria científica analisada nas universidades para preocupação comum a pessoas de diferentes nacionalidades e ocupações. Nos últimos anos, ativistas como Greta Thunberg catapultaram o debate para um maior nível de mediatismo, com as gerações mais jovens a encabeçarem a luta por um futuro sustentável.

Ainda que as alterações climáticas pareçam algo muito distante, a verdade é que os seus efeitos já se começam a fazer sentir. Por exemplo, Kiribati, um país pequeno constituído por 33 atóis no meio do Oceano Pacífico, está já a enfrentar problemas por causa do aumento do nível do mar, que provoca erosão costeira e tempestades mais frequentes que acabam por reduzir a produtividade agrícola indispensável à subsistência dos habitantes do país[2].

Em 1990, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas salientou que o maior impacto individual das alterações climáticas seria sobre a migração humana com milhões – as previsões apontam 200 milhões em 2050 – de pessoas deslocadas por causa de erosão e inundações costeiras e consequentes perturbações agrícolas[3]. Estes fenómenos estão já atualmente a obrigar comunidades inteiras a procurar outros lugares onde viver, criando assim, nas palavras do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR.) “novos padrões de deslocamento e competição por recursos naturais esgotados que podem desencadear conflitos entre comunidades ou agravar vulnerabilidades pré-existentes”[4].

Apesar da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecer este problema e encetar esforços para que estas pessoas recebam a proteção internacional que necessitam, o termo “refugiado climático”[5], frequentemente utilizado, não se encontra previsto no direito internacional, sendo, em sua vez, utilizado o termo “pessoas deslocadas no contexto de desastres e mudanças climáticas[6].

A rejeição do termo “refugiado climático” dá-se por este não cumprir os requisitos da definição de “refugiado” que consta na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados: uma pessoa que “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país (…)[7]”. (sublinhado nosso)

De facto, as alterações climáticas tendem a criar primeiramente deslocamentos internos dentro dos países afetados, ou seja, as pessoas afetadas por um qualquer fenómeno climático instalam-se noutra região do seu país que não foi ainda afetada, raramente atravessando fronteiras[8].

É ainda improvável que os fenómenos resultantes das alterações climáticas possam ser considerados como atos de perseguição[9], na medida em que não há realmente um agente de perseguição nem desta resultam violações de direitos humanos. Alguns autores defendem a possibilidade de se considerar os países poluidores responsáveis pelas alterações climáticas como agentes de perseguição[10], mas tal ideia não tem ainda qualquer aplicação prática.

Também não se pode considerar que os países afetados não podem ou não querem proteger os seus cidadãos dos efeitos das alterações climáticas, pois temos exemplos em contrário, como o do governo de Kiribati que em 2014 comprou um pedaço de terra de aproximadamente 20 km2 em Fiji para aí alojar os seus cidadãos deslocados[11]. O termo “refugiado” chega a ser considerado derrogatório pelos governos dos países afetados, pois consideram que este está associado a sentimentos de desamparo e falta de dignidade a que não querem estar associados[12].

Todavia, o conceito de “refugiado” na aceção da Convenção de 1951 aplica-se a todos aqueles que tiverem de abandonar o seu país por causa de violência e conflitos que tiveram a sua origem num fenómeno climático, como por exemplo um conflito por água num cenário de seca extrema. No Pacto Global para as Migrações, assinado em 2018, temos pela primeira vez a referência às alterações climáticas num documento sobre a temática das migrações à escala mundial. Assim, o Pacto identifica as mudanças climáticas como sendo responsáveis por movimentos migratórios e sugere que os países trabalhem juntos para começar a planear como auxiliar as pessoas que são obrigadas a migrar devido à violência ou aos conflitos que tenham sido causados por desastres naturais e mudanças climáticas[13].

Assim, por mais difundido que seja o conceito de “refugiado climático” na comunicação social é preciso ter em conta que tal não é reconhecido num contexto de direito internacional. No entanto, esta ideia parece estar a mudar, tal como se pode verificar na decisão da Comissão de Direitos Humanos da ONU no caso Teitiota v. Nova Zelândia, já em 2020. Nesta decisão:

O Comitê refere-se de maneira importante à necessidade de esforços nacionais e internacionais robustos para evitar a exposição de indivíduos a violações dos seus direitos devido aos efeitos das mudanças climáticas. Alerta que o risco de um país inteiro ficar submerso pela elevação do nível do mar é um risco tão extremo que, antes que se concretize, as condições de vida nesse país podem tornar-se incompatíveis com o direito à vida com dignidade. Estes são alertas importantes para os Estados e para a comunidade internacional como um todo. A Comissão sublinha a urgência de apoiar medidas de prevenção, mitigação de riscos e adaptabilidade em países afetados pela mudança climática e de aumentar ainda mais a cooperação de todos para enfrentar o que representa o desafio mais urgente de nossos tempos. Essas ações são fundamentais para evitar que os indivíduos se sintam forçados a sair para evitar danos iminentes, o que poderia, como observa a Comissão, desencadear obrigações internacionais de proteção”[14].

Ainda que as pessoas afetadas pelas alterações climáticas estejam protegidas internacionalmente de outras formas, será interessante examinar se o conceito de refugiado presente na Convenção de 1951 se estenderá para lhes ser aplicável quando estas tiverem necessariamente de abandonar os seus países porque estes deixaram de existir devido ao aumento do nível do mar.

Infelizmente, em poucas décadas teremos uma resposta a esta questão.


[1] Membro da NOVA Refugee Clinic. Mestranda em Direito Internacional e Europeu na NOVA School of Law, desenvolvendo uma dissertação na área do direito do asilo, mais concretamente sobre o princípio do non-refoulement. É Licenciada em Direito também pela NOVA School of Law.

[2] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Climate Change Adaptation – Kiribati, disponível em: https://www.adaptation-undp.org/explore/asia-and-pacific/kiribati (consultado a 7 de setembro de 2020)

[3] OIM, Migration and Climate Change, nº31, 2008, p. 9

[4] ACNUR, Climate change and disaster displacement, disponível em: https://www.unhcr.org/climate-change-and-disasters.html (consultado a 9 de setembro de 2020

[5] A primeira definição do termo surgiu em 1985 por Essam El-Hinnawi: “Pessoas que foram forçadas a deixar o seu habitat tradicional, temporariamente ou permanentemente, por causa de uma perturbação ambiental marcada (natural  e / ou desencadeada por pessoas) que colocou em risco a sua existência e / ou seriamente afetou a sua qualidade de vida. Para efeitos de “perturbação ambiental” nesta definição são significativas quaisquer mudanças físicas, químicas e / ou biológicas no ecossistema (ou base de recursos) que o tornam, temporária ou permanentemente, inadequado para suportar vida humana.” –  EL-HINNAWI, Essam, Environmental refugees, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente ( UNEP(02)/E52), 1985

[6] ACNUR, Climate change and disaster displacement, disponível em: https://www.unhcr.org/climate-change-and-disasters.html (consultado a 9 de setembro de 2020

[7] Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, 1951, art.1.º/A-2

[8] ACNUR, Climate change and disaster displacement, disponível em: https://www.unhcr.org/climate-change-and-disasters.html (consultado a 09 de setembro de 2020)

[9] BHAT, Neha, To Be or Not to Be: The Environmental Refugee, 30 de outubro de 2012, p.6, disponível em: https://ssrn.com/abstract=2170877 (consultado a 9 de setembro de 2020)

[10] Idem

[11] Besieged by the rising tides of climate change, Kiribati buys land in Fiji, Laurence Caramel, The Guardian, 01 de julho de 2014, disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2014/jul/01/kiribati-climate-change-fiji-vanua-levu (consultado a 9 de setembro de 2020)

[12] MORRISSEY, James, Rethinking the ‘debate on environmental refugees’: From Maximalists and Minimalists’ to ‘Proponents and Critics’, Journal of Political Ecology, Volume 19, 2012

[13] UN compact recognizes climate change as driver of migration for first time, Carolyn Beeler, The World, 11 de dezembro de 2018, disponível em: https://www.pri.org/stories/2018-12-11/un-compact-recognizes-climate-change-driver-migration-first-time (consultado a 22 de setembro de 2020)

[14] UN Human Rights Committee decision on climate change is a wake-up call, according to UNHCR, ACNUR, 24 de janeiro de 2020, disponível em: https://www.unhcr.org/news/briefing/2020/1/5e2ab8ae4/un-human-rights-committee-decision-climate-change-wake-up-call-according.html (consultado a 22 de setembro de 2020)

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About Renata Jorge Gomes

Mestranda em Direito Internacional e Europeu na NOVA School of Law, desenvolvendo uma dissertação na área do direito do asilo, mais concretamente sobre o princípio do non-refoulement e as violações desse mesmo princípio, praticadas pela Líbia e Itália nas suas atividades de cooperação quanto aos fluxos migratórios no Mediterrâneo. É Licenciada em Direito também pela NOVA School of Law.