A PENA ACESSÓRIA DE EXPULSÃO (PRESSUPOSTOS, LIMITES E FINALIDADES) – Parte I

João Athayde Varela/ June 30, 2021/

João Varela[1]

          Caio de Mello Ferreira[2]

          Diogo Santos Sereno[3]

          Otávio de Figueiredo Raupp[4]

RESUMO:

Dentro da categoria dogmática da pena acessória, a pena de expulsão individualiza-se por ser privativa do cidadão estrangeiro, resida ou não, legalmente, em território nacional. De algum modo, a exclusividade que encerra reflete-se no regime jurídico a que está sujeita, designadamente nos seus pressupostos – formais e materiais – e limites. De todas estas dimensões legais da expulsão trata o presente artigo, que conclui com uma breve reflexão sobre a natureza do poder donde ela emana e a razão político-criminal que lhe está subjacente.

PALAVRAS-CHAVE: automaticidade dos efeitos penais; pressupostos da pena de expulsão; limites à expulsão; soberania; finalidades.


  1. INTRODUÇÃO

          Antes do mais, convirá dizer algo, em jeito de introdução, sobre a espécie de pena a que a expulsão pertence: i. e., a pena acessória[5]. Como se infere do próprio qualificativo, a pena dita acessória há de pressupor a existência de uma pena principal. É dizer que esta última constitui condição necessária da primeira, só podendo a pena acessória ser pronunciada, na sentença condenatória, conjuntamente com a pena principal. Não é, todavia, condição suficiente no sentido em que a pena acessória não se reduz a mero efeito automático ou ope legis da pena principal (cfr. art. 65.º, n.º 1, CP).

Neste último sentido, mas avançando ainda mais, importará reconhecer hoje que a pena acessória se traduz numa verdadeira pena, uma vez que é a consequência jurídica de um específico conteúdo de ilícito, pressupondo, também, um maior grau de culpa pelo facto praticado. Daí decorre que, à semelhança da pena principal, a fixação da respectiva medida deve ser realizada por referência a uma certa moldura legal, tendo ainda como critérios de delimitação a culpa do agente e as exigências de prevenção (cfr. art. 71.º, n.º 1, CP)[6].

Também a Constituição portuguesa (CRP), proibindo “a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos” como efeito necessário da pena (art. 30.º, n.º 4), confere um novo sentido e justificação à pena acessória, retirando-lhe a carga estigmatizante e contrária à readaptação social do delinquente que lhe está, tradicionalmente, associada[7].

Conclui-se, portanto, que, estando a pena acessória afeta a finalidades preventivas ou de tutela dos bens jurídicos protegidos[8] e devendo o respectivo quantum ser fixado em obediência às regras gerais de determinação da medida da pena (cfr. arts. 40.º, n.º 2 e 71, ns.º 1 e 2, CP), não poderá o juiz decidir-se pela sua aplicação a não ser que a situação em análise evidencie um substrato adicional de ilicitude e culpa, materializado na colocação em perigo de um determinado bem ou interesse jurídico, que torne, por um lado, necessária (rectius, proporcional ex vi art. 18.º, n.º 2, CRP) a restrição de direitos em que essa aplicação se traduz[9] e postule, por outro, as referidas exigências preventivas[10].

1.1. Numerus apertus das penas acessórias

Do estatuído, desde logo, no art. 65.º, n.º 2, CP, resulta a possibilidade de a lei criar a todo o tempo penas acessórias, devendo estas, no entanto e como dito atrás, respeitar o princípio constitucional e legal da não automaticidade dos efeitos penais. É dizer que estarão sujeitas às regra próprias de um Estado de direito democrático, entre as quais se contam a reserva judicial, princípio da culpa e princípio da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu das penas.

Assim, nos dias de hoje, além das penas acessórias, expressamente, previstas no Código Penal: arts. 66.º (proibição do exercício de função), 67.º (suspensão do exercício de função), 69.º (proibição de conduzir veículos com motor), 69.º-B (proibição do exercício de profissão, funções ou atividade por crime contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual), 69.º-C (proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais), 346.º (proibição de eleger e ser eleito para Presidente da República, membro de assembleia legislativa ou autarquia local, ou para ser jurado, por crime contra a segurança do Estado), etc., a legislação penal extravagante é fértil nesta categoria dogmática de pena. Servem de exemplo o art. 8.º, Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro (infrações antieconómicas e contra a saúde pública), art. 16.º, Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (Regime Geral das Infrações Tributárias), art. 34.º, Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas), art. 151.º, Lei n.º 23/2007, de 4 de julho (Lei dos Estrangeiros), etc.

1.2. Finalidades

Diz-se amiúde que as penas acessórias possibilitam o reforço e a diversificação do conteúdo sancionatório da condenação pela prática de certos crimes, exercendo, assim, uma função coadjuvante das penas principais. É dizer que, estando estas adstritas a finalidades de prevenção geral e especial, seriam idênticos os fins perseguidos por aquelas outras.

Não nos parece que seja, inteiramente, assim, desde logo porque comungamos do entendimento sufragado por certa jurisprudência, em conformidade com o qual aquelas duas penas – principal e acessória – evidenciam, cada uma delas, uma racionalidade político-criminal própria que lhes confere um sentido específico. Será, também, por este motivo que a mesma jurisprudência nega a existência de qualquer proporcionalidade, aritmética ou não, na respectiva quantificação concreta, não obstante estarem ambas sujeitas aos mesmos critérios legais de determinação da medida de pena (vide ponto 1., in fine)[11].

Para uma melhor dilucidação desta questão, convirá atender, em traços sumaríssimos, à recente história legislativa das penas acessórias. Assim, na vigência do Código Penal anterior de 1886, na sua versão originária, existem apenas efeitos da condenação, podendo estes ser penais ou não penais e verificando-se, todos eles, ope legis (cfr. arts. 74.º e ss., C. Penal de 1886). Está-lhes associada uma intenção estigmatizante (v.g., perda de dignidades, títulos, nobreza ou condecorações) ou desfavorecedora da ressocialização (v.g., incapacidade de eleger, ser eleito ou nomeado para quaisquer funções públicas).

Após a publicação do atual Código Penal de 1982 (versão inicial), os efeitos penais da condenação convertem-se em penas acessórias, excluindo-se deste documento legislativo os efeitos não penais (cfr. arts. 65.º e ss., C. Penal de 1982). Simultaneamente, proscreve-se a automaticidade (ope legis) da perda de direitos civis, profissionais ou políticos em que muitas daquelas penas se traduzem. Destarte, estas consequências jurídicas passam a ser cominadas, na sentença condenatória, em complemento da pena principal, requerendo, portanto, uma intervenção judicial, em ordem à respectiva fundamentação. Todavia, a inexistência de qualquer referência à sua duração, além de as converter em instrumentos jurídico-penais estranhos a uma ideia da culpa, será, dificilmente, compatível – não obstante a possibilidade de reabilitação passados dois anos sobre o cumprimento da pena principal (cfr. art. 70.º, C. Penal de 1982) – com a exigência constitucional de não perpetuidade ou duração ilimitada ou indefinida das penas (cfr. art. 30.º, n.º 1, CRP). Finalmente, não deixam de subsistir efeitos automáticos da condenação pela prática de certos crimes[12], que correspondem à “incapacidade para eleger o Presidente da República, os membros de assembleias legislativas ou de autarquias locais, para ser eleito como tal, para ser jurado, ou ainda para exercer o poder paternal, a tutela, a curatela ou a administração de bens” (cfr. art. 69.º, n.º 2, C. Penal de 1982)[13].

Atualmente e na sequência da Reforma do Código Penal em vigor, operada através do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, parece pretender-se uma melhor clarificação, quanto ao respectivo regime jurídico-legal, entre penas acessórias, por um lado, e efeitos das penas, por outro. Assim, não apenas as primeiras, mas também os segundos, integram a epígrafe do Capítulo III, do Título III, do Livro I (Parte Geral). Mais concretamente, no que respeita aos efeitos das penas (ou das condenações) previstos nos arts. 68.º (efeitos da proibição e da suspensão do exercício de função) e 69.º-A (declaração de indignidade sucessória), CP, impor-se-á apenas a intermediação judicial em obediência ao ditame constitucional e legal da não automaticidade, estando eles, em tudo o mais, vinculados à pena ou condenação donde emanam.

Quanto à pena acessória, se só existe, dogmaticamente, como verdadeira pena, caso esteja associada a um facto próprio revelador de um específico conteúdo de ilicitude e culpa e determinante, segundo critérios de proporcionalidade, de uma certa moldura legal sancionatória (pena abstracta)[14], já numa perspectiva político-criminal a sua justificação reside, fundamentalmente, em exigências de segurança geral e individual: portanto, de prevenção negativa.

** o presente contributo continuará em mais duas partes **


FORMA DE CITAR:
J.VARELA, C.M. FERREIRA, D. SERENO, O. F. RAUPP, A Pena Acessória de Expulsão (Pressupostos, Limites e Finalidades) – Parte I, NOVA Refugee Clinic Blog, Junho 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=a-pena-acessoria-de-expulsao-pressupostos-limites-e-finalidades-parte-i >


[1] Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Membro integrado do CEDIS e team leader do Grupo Migrações & Poder Punitivo do Estado da NOVA – Refugee Clinic.

[2] Aluno do 4.º ano de Licenciatura da NOVA School of Law e membro do Grupo Migrações & Poder Punitivo do Estado da NOVA – Refugee Clinic.

[3] Aluno do 3.º ano de Licenciatura da NOVA School of Law. Atualmente, Presidente da Associação de Estudantes da NOVA School of Law Students’Union e membro do Grupo Migrações & Poder Punitivo do Estado da NOVA – Refugee Clinic.

[4] Aluno do 3.º ano de Licenciatura da NOVA School of Law e membro do Grupo Migrações & Poder Punitivo do Estado da NOVA – Refugee Clinic.

[5] A par das pessoas singulares, as únicas que temos em vista, também as pessoas colectivas e entidades equiparadas podem ser objeto de penas acessórias, especialmente enunciadas no art. 90.º-A, n.º 2, CP.

[6] Assim, também, Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 14/96, de 7 de novembro, Diário da República, I Série-A, n.º 275, de 27-11-1996, pp. 4285-4289, respeitante à aplicação da pena acessória de expulsão a um cidadão estrangeiro, condenado pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas de estupefaciente, à época p. e p. pelo artigo 24.º, Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de dezembro. Diz-se aí que a proscrição da correspondência automática entre a pena ou condenação por certo crime e a perda de direitos (pena acessória) “(…) não é mais do que a consequência da preocupação do direito criminal moderno com a busca de uma individualização das penas conforme vários fins a prosseguir, um dos quais o ajustamento da reação penal à culpa do agente” (ibidem, p. 4287).

[7] Vide CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada (Artigos 1º a 107º), vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 504. Diz-nos, também, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 94 e s., que “tanto os efeitos das penas, como os efeitos dos crimes, como a própria concepção tradicional das penas acessórias encontram-se historicamente ligados à ‘infâmia’ da legislação medieval e às suas penas de honra” (o “itálico” é do autor).

[8] A doutrina e a jurisprudência associam, não raras vezes, a pena acessória a uma ideia de neutralização da particular perigosidade do agente, particularmente evidente nos casos de “proibição de conduzir veículos com motor” (cfr. art. 69.º, CP). Neste sentido, vide, entre outros, Acórdão do TRC, de 18 de março de 2015, Proc. n.º 136/14.0GCACB.C1, II, 2.; disponível em www.dgsi.pt.

[9] A proporcionalidade referida, em texto, é a determinada pelo desvalor social (ilicitude) e pessoal (culpa) da conduta do agente quando referido à tutela de um bem jurídico, sendo de todo estranha àquela outra proporcionalidade (quase aritmética) a que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores muitas vezes recorre entre as penas concretas principal e acessória, que seria a consequência da subsunção de ambas aos mesmos critérios gerais de quantificação (vide, entre outros, Acórdão do TRC, de 19 de dezembro de 2017, Proc. n.º 186/14.7GCLSA.C2, II, 3.; disponível em www.dgsi.pt).

[10] Como nós, vide, por todos, Acórdão do TRE, de 24 de fevereiro de 2015, Proc. n.º 169/14.7GBBNV.E1, nota final n.º 7: “ a perda de direitos (…) demanda a intervenção do juiz, encontra-se submetida aos princípios gerais da pena (legalidade, proporcionalidade, jurisdicionalidade) e a determinação do período concreto de privação do direito faz-se, por referência a uma moldura variável, em função da ponderação da culpa do agente, das circunstâncias do caso e das exigências preventivas, de acordo com os critérios norteadores definidos no art. 71º do C. Penal, que também valem para a pena principal, nada impondo, no entanto, que tenha de ter, quanto à sua duração, correspondência com esta última (dada a diversidade dos objetivos de política criminal ligados à aplicação de cada uma delas)”; disponível em www.dgsi.pt.

[11] Cfr., entre outros, Acórdão do TRP, de 7 de setembro de 2018, Proc. n.º 39/15.1GTAVR.P1; disponível em www.dgsi.pt.

[12] Em virtude da proibição de efeitos automáticos constante do art. 65.º, CP, dizer respeito apenas às penas, uma larga parte da nossa doutrina sustenta que ela não abrange a perda de direitos derivada da prática do crime. Todavia, o Tribunal Constitucional veio já a considerar, em diversas ocasiões, inconstitucional essa interpretação, à luz da disposição idêntica do art. 30.º, n.º 4, CRP (vide ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 220).

[13] Precisamente por esta razão, DIAS, Jorge de Figueiredo. op. cit., p. 97, diz, por referência ao legislador: “resta saber se (…) não acabou por acentuar, no que denominou ‘penas’ acessórias, o seu carácter tradicional de efeitos (agora não automáticos) da condenação na pena principal – e portanto providências por inteiro estranhas à ideia da culpa -, afastando-as, apesar da ‘mudança de etiquetas’, da natureza de verdadeiras penas”.

[14] Em virtude das exigências próprias do princípio da proporcionalidade lato sensu (cfr. art. 18.º, n.º 2, CRP) e, também, do princípio da tipicidade da sanção criminal, este outro derivado dos arts. 29.º, n.º 3 e 30.º, n.º 1, CRP, duvida-se da conformidade à Constituição dos arts. 69.º-B e 69.º-C, CP, quando fixam molduras penais, excessivamente, amplas ou indefinidas: 2 a 20 anos e 5 a 20 anos consoante a vítima não seja menor ou o seja. A este respeito, CANOTILHO, J. J.; MOREIRA, Vital. op. cit., p. 495, afirmam: “o princípio da tipicidade exclui tanto as fórmulas vagas na descrição dos tipos legais de crime, como as penas indefinidas ou de moldura tão ampla que em tal redunde”.

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About João Athayde Varela

Licenciado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduou-se pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da mesma Faculdade e Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Nova School of Law.