Voto e refugiados: a efetivação do princípio da universalidade
Mariana Costa[1]
Resumo:
Em relação ao direito de voto, não há garantias de que os refugiados gozarão deste direito, nem no Estado de nacionalidade, nem no Estado de acolhimento. Exatamente por este motivo, os refugiados devem ser integrados, não só numa comunidade civil, mas também numa comunidade política de plenos direitos.
Não raras vezes, um beneficiário do estatuto de refugiado está dependente[2] do Estado de acolhimento por um período indeterminado de tempo, daí que lhe deverá ser concedido tal direito — de forma a desenvolverem um sentimento de participação ativa na sociedade e no próprio acolhimento de pessoas carecidas de proteção internacional. Neste sentido, o presente blogpost visa tratar de forma sucinta sobre o direito de voto de refugiados e apresentar argumentos a favor da conceção deste direito aos beneficiários de proteção internacional.
Palavras-chave: integração; direito de voto; vulnerabilidade; democracia inclusiva; distanciamento político
Introdução:
De acordo com o artigo 1.º da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) (e com a Lei do Asilo — Lei n.º 27/2008, de 30 de junho), é garantido o direito de asilo aos estrangeiros e apátridas perseguidos por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Acresce, ainda, a condição de estes se encontrarem fora do país de origem e a impossibilidade ou o temor de regressar a esse país. A Lei de Asilo portuguesa ainda reconhece a proteção internacional aos que fogem de conflitos armados ou de sistemáticas violações de direitos humanos no âmbito da proteção subsidiária. Para o objetivo a que se propõe, o presente blogpost tratará a nomenclatura refugiado de forma abrangente e como sinónimo de beneficiário de proteção internacional, independentemente do estatuto específico concedido.
A decisão de sair do seu Estado de nacionalidade e recorrer ao reconhecimento da sua situação como refugiado não é uma decisão tomada de ânimo leve, mas uma decisão que coloca uma pessoa numa situação de especial vulnerabilidade e exposição. Além disso, o indivíduo é distanciado de todo e qualquer direito político, reduzindo-se à obediência para com um sistema, no qual foi integrado por tempo indeterminado. Por isso, é importante que as limitações que levaram à perseguição e, consequentemente, à sua fuga não se perpetuem e que sejam mitigadas em Estados de acolhimento que prezem pelo estado de direito democrático, nomeadamente, através da promoção de outras oportunidades de participação política direta.
Ademais, o reconhecimento do direito de voto está dependente do poder legislativo e da soberania do Estado, que insiste em criar uma comunidade política[3]. Esta lógica leva a um distanciamento político de pessoas que participam quotidianamente na sociedade civil do país de acolhimento e que representam uma pequena minoria relativamente ao número total de eleitores. Assim, a aplicação do princípio da universalidade, por um lado, e a compreensão da pessoa refugiada como um ser político, por outro, podem ser o fundamento para garantir aos refugiados o direito de voto no país de acolhimento.
O voto e a cidadania:
O direito de voto vem, normalmente, associado ao conceito de cidadania — a exigência de um vínculo do indivíduo a um determinado Estado[4] (vide os artigos 39.º e 40.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia). O conceito de soberania popular é a doutrina que parte da premissa de que o poder reside no povo e é exercido por meio dos seus representantes eleitos direta ou indiretamente (vide artigos 2.º e 3.º da CRP). A noção de povo está intrinsecamente relacionada com os costumes, as tradições, o passado cultural e o histórico de um determinado conjunto de indivíduos e da sua identidade num determinado território.
Neste seguimento, a Constituição da República Portuguesa (CRP), além do princípio da universalidade (artigo n.º 12) e da igualdade (artigo 13.º), consagra o princípio da equiparação para estrangeiros e apátridas (consagrado no n.º 1 do artigo 15.º) e as suas exceções, nomeadamente os direitos políticos, como o exercício do direito de voto (vide n.º 2 do mesmo artigo). Este regime aplica-se também a beneficiários do Estatuto de Refugiado e de Proteção Subsidiária, nos termos do artigo 65.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho (redação atual). Quer isto dizer que aos refugiados é-lhes imposto um distanciamento político pela via do sufrágio, limitado a regras de reciprocidade, podendo apenas recorrer ao associativismo, aos sindicatos, aos protestos e às reivindicações como forma de participação ativa[5].
Porquê da participação ativa dos refugiados:
Em geral, um beneficiário de proteção internacional não terá a possibilidade de retornar ao seu país de origem ou residência habitual, sem que isso coloque a sua sobrevivência em risco. Isto resulta, por si só, da condição de refugiado, que se vê perseguido e sente necessidade de evasão. Daí que, de acordo com a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, nenhum Estado Contratante poderá expulsar ou repelir um refugiado (vide artigo 33.º, n.º 1 do respetivo diploma), princípio este também consagrado no artigo 47.º da Lei de Asilo portuguesa.
Em geral, um beneficiário de proteção internacional não terá a possibilidade de retornar ao seu país de origem ou residência habitual, sem que isso coloque a sua sobrevivência em risco. Isto resulta, por si só, da condição de refugiado, que se vê perseguido e sente necessidade de evasão. Daí que, de acordo com a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, nenhum Estado Contratante poderá expulsar ou repelir um refugiado (vide artigo 33.º, n.º 1 do respetivo diploma), princípio este também consagrado no artigo 47.º da Lei de Asilo portuguesa.
Ora, aí reside a importância de laços mais concretos com a sociedade de acolhimento e o direito de voto, como um dever cívico, poderá ser uma solução. Importa ressaltar que a determinados imigrantes é concedido o direito de voto nas eleições de titulares para os órgãos das autarquias locais em Portugal e até, em casos mais específicos, para as legislativas.
No âmbito da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto, e da Declaração n.º 29/2021, de 25 de março, nas eleições autárquicas de 2021, cidadãos europeus, cidadãos britânicos com residência em Portugal anterior ao Brexit, cidadãos brasileiros e cabo-verdianos e cidadãos argentinos, chilenos, colombianos, islandeses, noruegueses, neozelandeses, peruanos, uruguaios e, finalmente, venezuelanos puderam votar, ainda que sujeitos a requisitos distintos. Porém, de acordo com os dados do ACNUR, os refugiados vêm, sobretudo, da República Árabe da Síria, da Venezuela, do Afeganistão, do Sul do Sudão e de Myanmar, o que lhes limita o direito ao sufrágio, dado que o exercício do voto está condicionado à existência de acordos de reciprocidade[6].
Todavia, um beneficiário de proteção internacional não pode recorrer à proteção do seu Estado de nacionalidade, uma vez que este é incapaz de prover pela prevenção da vida e segurança do indivíduo[7]. Ora, isto leva-nos a concluir que, pela aplicação do princípio da universalidade e a especial proteção de um refugiado em Portugal – cujos direitos são equiparados aos nacionais –, seria possível a extensão do direito de sufrágio – pelo menos nas eleições autárquicas – aos beneficiários de proteção internacional. Isto permitiria não apenas a criação de um sentimento de pertença, mas também a existência de uma democracia mais inclusiva.
De acordo com a teoria da identidade social, a conceção deste direito a imigrantes, na perspetiva de nacionais, está relacionada com a ideia de perda de hegemonia política, que os leva a votar em partidos que se opõem à entrada de refugiados[8]. Este sentimento anti-imigrantes poderá ser, todavia, evitado através do reforço do conhecimento e, sobretudo, através do contacto e diálogo entre ambas as partes[9].
Conclusão:
Será a cidadania o melhor critério para determinar o direito de voto? Será que este direito não deveria ser estendido a beneficiários de proteção internacional, reforçando os laços com o Estado de asilo? Será que fará sentido obrigar um refugiado a vincular-se ao Estado de acolhimento através de laços de nacionalidade apenas para que este veja o direito ao sufrágio reconhecido? Importa mencionar que há países, como, por exemplo, Afeganistão[10], que não permitem a existência da dupla nacionalidade. Nestes casos, seria ainda mais penoso exigir a um indivíduo que se vinculasse a um Estado através da nacionalidade, sendo forçado a perder a sua total identidade.
Embora beneficiários de proteção internacional, em geral, gozem de liberdade de expressão, de associação e de reunião, isto poderá não ser suficiente para se sentirem integrados de forma significativa na sociedade do Estado de acolhimento — o direito à participação política pela via do sufrágio está intrinsecamente ligado à autoafirmação do indivíduo.
É evidente que, na realidade portuguesa, esta medida não seria suficiente para garantir a integração por completo. É urgente investir em melhores condições de integração, nomeadamente no que toca à aprendizagem da língua, ao alojamento, à representatividade nos partidos políticos e à promoção de políticas sociais, para que o indivíduo se sinta realmente um agente inserido na sociedade[11].
No entanto, a participação política através do voto poderá permitir aos refugiados demonstrar o seu grau de satisfação com a política de acolhimento e integração promovida pelos representantes do Estado de acolhimento – a integração pela via democrática, direta e participativa. Em suma, é fundamental relembrar que, não raras vezes, é a própria supressão do direito de voto que leva à situação da procura de asilo e de proteção internacional[12]. Por conseguinte, aos refugiados deveria ser concedido o direito de voto, de forma a poderem expressar a sua opinião política e, efetivamente, envolverem-se na sociedade onde se integram por tempo indeterminado.
[1] Aluna de Mestrado em Direito, com especialização em Direito Internacional e Europeu, na Nova School of Law. Membro do Grupo de Prática da Nova Refugee Clinic.| Legal Clinic
[2] Infelizmente, contudo, nem todos os beneficiários do estatuto de refugiado recebem apoios diretos dos Estados de acolhimento.
[3] Earnest, David. Voting rights for resident aliens: a comparison of 25 democracies. In: 2003 annual meeting of the Northeast Political Science Association and the International Studies Association-Northeast.
[4] Nem todos os Estados seguem este modelo — veja-se, por exemplo, o caso da Nova Zelândia, onde podem votar todos os cidadãos e residentes permanentes com 18 anos que aí residam continuamente há, pelo menos, 12 meses vide https://vote.nz/assets/2020-general-election/Guide-to-Voting_August_2020.pdf .
[5] Zobel, C., & Barbosa, C. E. (2011). O acesso dos imigrantes ao voto e aos cargos eleitorais nas autarquias portuguesas (Vol. 8). Observatório das Migrações, ACM, IP.
[6] Vide n.ºs 4 e 5, do artigo 15.º da CRP.
[7] Ziegler, R., & Goodwin-Gill, G. (2017). Voting Rights of Refugees. In Voting Rights of Refuges (pp. I-Ii). Cambridge: Cambridge University Press.
[8] Altındağ, O., & Kaushal, N. (2021). Do refugees impact voting behavior in the host country? Evidence from Syrian refugee inflows to Turkey. Public Choice, 186(1), 149-178.
[9] Steinmayr, A. (2021). Contact versus exposure: Refugee presence and voting for the far right. Review of Economics and Statistics, 103(2), 310-327.
[10] Veja-se o artigo 7.º da Lei de Nacionalidade do Afeganistão, disponível em: https://www.refworld.org/pdfid/404c988d4.pdf .
[11] Zobel, C., & Barbosa, C. E. (2011). O acesso dos imigrantes ao voto e aos cargos eleitorais nas autarquias portuguesas (Vol. 8). Observatório das Migrações, ACM, IP.
[12] Gilbert, G. (2018). Political participation of refugees in their country of nationality.
COMO CITAR ESTE BLOG POST:
Costa, Mariana. “Voto e refugiados: a efetivação do princípio da universalidade”. NOVA Refugee Clinic Blog, Fevereiro 2022, disponível em: <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=voto-e-refugiados-a-efetivacao-do-principio-da-universalidade>