As Bases de Dados e a Gestão Migratória na União Europeia

Priscila Azevedo/ February 28, 2022/

Priscila Azevedo[1]

Sofia Solayman[2]

RESUMO:

Os desafios da segurança nas fronteiras externas da União Europeia encontram-se fortemente associados ao controlo do fluxo migratório. Como consequência dessa opção política, foram criados e estão em desenvolvimento diversos sistemas de informação, nomeadamente o SIS II, o Eurodac, o VIS, o EES, o ETIAS e o ECRIS-TCN, estando os três primeiros no presente totalmente operacionais. Estima-se que brevemente as ditas bases de dados atuem em interoperabilidade, o que facilitará o trabalho das autoridades e dinamizará os procedimentos de vistos e concessão de asilo. 

Apesar de indubitavelmente fornecerem um significativo suporte na gestão de fronteiras, tais sistemas de informação proporcionam inúmeros questionamentos éticos em virtude das potenciais implicações nos direitos fundamentais dos nacionais de países terceiros.

PALAVRAS-CHAVE: migração; transformação digital; bases de dados; nacionais de países terceiros; interoperabilidade.


            Introdução

            A criação de sistemas de informação em larga escala na União Europeia que visam processar dados de cidadãos nacionais de países terceiros (doravante, NPT’s) encontra-se diretamente conectada com a criação do espaço Schengen em meados de 1980, emergindo a noção de Europa sem fronteiras internas[3]. O desenvolvimento desses sistemas permite a observação de uma tendência de enquadramento da movimentação dos NPT’s à migração irregular. Por isso, os seus dados começaram a ser recolhidos como forma de prevenção da criminalidade (em especial, de atos terroristas) e como meio de deteção de NPT’s que não tenham autorização para entrar e/ou permanecer no território de um dos Estados-membros da UE[4].

            O aumento da utilização de tecnologias na área da segurança e das fronteiras externas fomenta a digitalização da própria política migratória europeia[5]. Paralelamente, o controlo tradicional da imigração dá lugar a um verdadeiro sistema de vigilância, no qual NPT’s são classificados de acordo com os perigos que representam para a sociedade[6].

            Sabendo que a transformação digital na UE foi originada pelo processo de digitalização do controlo e da gestão das fronteiras, consideramos premente abordar o debate que gira em torno da interoperabilidade das bases de dados e sistemas de informação, destacando, particularmente, dada a sua importância, as bases de dados utilizadas para a gestão das fronteiras externas.

            Neste sentido, pretendemos alertar o leitor para a importância do tema tendo em conta as implicações da transformação digital na vida do migrante, o que, consequentemente, se repercute nos seus Direitos Fundamentais. Esta interferência, do nosso ponto de vista, não só justifica a avaliação de impacto decorrente da utilização da inteligência artificial no processamento de dados, como também suscita questões éticas que não devem ser ignoradas[7].

            Paralelamente, o aumento da digitalização deve implicar preocupação com a segurança dos dados por estar em causa a dignidade dos NPT’s. Neste sentido, consideramos necessário que a tecnologia seja utilizada de forma responsável, no respeito pelos direitos humanos.

  1. Transformação digital e o controlo das fronteiras externas da UE

            A transformação digital enquanto integração de tecnologias digitais e seu impacto na sociedade apresenta um importante papel ao nível das políticas da União, principalmente no que toca à gestão das migrações, caracterizando-se pela mutabilidade.

            Note-se que integram a transformação digital na gestão da política migratória da UE o uso de tecnologias digitais ao nível dos serviços e procedimentos, incluindo formulários online para requerentes de asilo e o suporte automatizado para decisões relacionadas com NPT’s. Mas não só. Entre os benefícios das tecnologias digitais mencione-se o auxílio na procura de vítimas de tráfico de seres humanos, a prevenção à fraude de identidade e a identificação de indivíduos sem documentação que já foram registados em alguma base de dados.

            De facto, os NPT’s representam um grande desafio ao nível da manutenção da unidade na UE no que concerne à segurança. Nesse cenário, assistimos à célere evolução dos sistemas de informação em larga escala e a uma proliferação de bases de dados[8], cujos objetivos passam, entre outros, pela melhoria da gestão das fronteiras, combate a crimes graves e terrorismo e dinamização dos processos de migração e requerimento de asilo.

            No âmbito do processamento de dados, tais sistemas dependem cada vez mais de dados biométricos, como impressões digitais, procurando-se facilitar a ligação entre o indivíduo e os respetivos dados já armazenados[9]. Nesse sentido, concordamos que o controlo dos NPT´s através de dados biométricos se tem revelado cada vez mais intrusivo posto que esses bancos de dados configuram em si ferramentas gerais de vigilância que não são apenas utilizadas em função do seu propósito original – a gestão da migração e asilo – permitindo uma abordagem baseada no risco em relação ao movimento de indivíduos, alterando os controlos de fronteiras dentro e fora do território Schengen, prevenindo preferencialmente a chegada de requerentes de asilo, filtrando migrantes indesejados e criminosos antes da sua entrada e fornecendo acesso rápido a viajantes que são tidos como confiáveis[10]. Porquanto o nosso objetivo neste blog post não é entrar em detalhes sobre as bases de dados relativas aos NPT´s, para efeitos de compreensão geral iremos apenas identificar as bases de dados existentes e apresentar os seus objetivos principais de forma bastante sintetizada.

  1. As bases de dados utilizadas no controlo externo das fronteiras da UE

            As bases de dados da UE que processam dados pessoais de NPT’s são o SIS II, o VIS, o Eurodac, a EES, a ETIAS e a ECRIS-TCN, estando as primeiras três totalmente operacionais neste momento[11].

BASES DE DADOS PRINCIPAL OBJETIVO[12]
SIS II – Sistema de Informação Schengen[13] auxiliar a polícia e os controlos fronteiriços
Eurodac[14] apoiar a aplicação do Regulamento de Dublin
VIS – Sistema de Informação sobre Vistos[15] processamento de vistos
EES – Sistema de Entrada-Saída[16] registo de viagens dentro e fora da EU
ETIAS – Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem[17] realização de verificações pré-fronteiras para viajantes isentos de visto
ECRIS-TCN – Sistema Europeu de Informação sobre Registos Criminais para nacionais de países terceiros[18] Tratamento de informações de NPT’S condenados
  1. Interoperabilidade das bases de dados

            Tendo em conta a previsão de em 2023 todas as bases de dados trabalharem em interoperabilidade[19], no contexto das migrações, dado que haverá provavelmente troca de informações entre si em breve a procura por uma autoridade nacional de informação sobre um NPT numa das bases de dados permitirá o acesso aos dados recolhidos por todas as bases supramencionadas. Evidente é que a interoperabilidade entre os sistemas de informação da UE visa proporcionar um acesso rápido e fácil às informações sobre quem atravessa as fronteiras para ingressar na UE, o que inclui desde viajantes de curta duração a requerentes de asilo.

            Há que estar consciente de a interoperabilidade poder oferecer novas oportunidades de segurança e ampliar a defesa de pessoas vulneráveis – por exemplo, no caso de crianças desaparecidas e de vítimas de tráfico humano, tal permitirá uma resposta mais precisa – mas também criará novos desafios ao nível da proteção dos Direitos Fundamentais. 

            Destaque merece ainda o caso dos migrantes irregulares, visto que a interoperabilidade aumentará as razões que motivam a ressalva em procurar atendimento na saúde pública ou apoio policial no caso de serem vítimas de algum crime, nomeadamente por receio de fornecimento dos seus dados e, consequentemente, serem afastados do Estado-membro em que vivem, o que os tornará vítimas duplamente.

            Como vimos, o controlo tradicional da imigração dá lugar a um sistema de vigilância em que diferentes grupos de NPT’s são classificados em função dos potenciais perigos que possam representar para a sociedade[20].

            Certo é que no momento em que as bases de dados se encontrem todas interoperacionais transformar-se-ão em poderosas ferramentas inteligentes, não deixando praticamente nenhum NPT sem vigilância[21].

            Conclusões

            É inequívoco afirmar que esses sistemas apoiam fortemente a gestão das fronteiras e, de facto, visam trazer benefícios aos nacionais dos Estados-membros. Mas a que custo? Esta é a verdadeira questão cuja resposta implica uma pesquisa aprofundada. Será exagerado afirmar que os NPT’s estariam a ser tratados como potenciais criminosos apenas por pretenderem entrar na UE? Conhece-se efetivamente as implicações do fornecimento de tantos dados pessoais, incluindo biometria? De que forma os NPT´s se podem proteger caso os seus dados sejam usados para fins diversos daqueles que motivaram a sua recolha? Um NPT com dupla nacionalidade europeia também terá os seus dados armazenados nessas bases de dados? Estes questionamentos evidenciam possíveis implicações negativas para este grupo de indivíduos que, per si, já se encontra numa situação de vulnerabilidade.

            Apesar da interoperabilidade não violar intrinsecamente os direitos fundamentais, é crucial que sejam criadas salvaguardas que garantam a qualidade das informações armazenadas, que especifiquem a finalidade do tratamento desses dados e que impeçam o acesso e compartilhamento de informações com terceiros. Paralelamente, também é necessário apostar no desenvolvimento de mecanismos eficazes e adequados para proteger os direitos estabelecidos tanto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia como na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

            Em suma, se certo é que o uso de algoritmos pode trazer benefícios na melhoria da gestão das fronteiras externas, é igualmente imprescindível que medidas de segurança na proteção desses dados pessoais e questões éticas tanto na coleta quanto no armazenamento sejam discutidas para que não se violem os direitos humanos dos NPT´s, não utilizando como justificação o interesse dos nacionais da UE[22].


[1] Aluna do 1º ano do Mestrado em Direito Internacional e Europeu e investigadora da NOVA Refugee Clinic, na linha de investigação Migração e Transformação Digital.

[2] Aluna do 3º ano da Licenciatura em Direito na NOVA School of Law, bolseira de investigação da FCT no âmbito do Projeto LegImpact e investigadora da NOVA Refugee Clinic, na linha de investigação Migração e Transformação Digital.

[3]  VAVOULA, Niovi. Databases for Non-EU Nationals and the Right to Private Life: Towards a System of Generalised Surveillance of Movement?. P. 1.

    RIJPMA, Jorrit J. Brave New Borders: The EU’s Use of New Technologies for the Management of Migration and Asylum. P. 199.

[4] EMN Annual Conference: Digital transformation in migration, 30 de abril de 2021.

[5] O Novo Pacto sobre Migração e Asilo da Comissão Europeia, apresentado em 2021 e ainda em discussão, destaca a necessidade de se fazer uma triagem eficaz e simultaneamente de existirem procedimentos de asilo eficientes, a par de se fazer uma gestão integrada e moderna das fronteiras.

[6] VAVOULA, Niovi. The ‘Puzzle’ of EU Large-Scale Information Systems for Third-Country Nationals: Surveillance of Movement and Its Challenges for Privacy and Personal Data Protection. P. 3.

[7] VAVOULA, Niovi. Consultation of EU Immigration Databases for Law Enforcement Purposes: a Privacy and Data Protection Assessment. PP. 154-156.

[8] VAVOULA, Niovi. Consultation of EU Immigration Databases forLaw Enforcement Purposes: a Privacy and Data Protection Assessment. P. 140.

[9] PLOEG, Van der, Machine-Readable Bodies Biometrics, Informatization and Surveillance, in E. Mordini and M. Green (eds), Identity, Security and Democracy (2009). P. 85.

   VAVOULA, Niovi. Consultation of EU Immigration Databases forLaw Enforcement Purposes: a Privacy and Data Protection Assessment. P. 142.

[10] RIJPMA, Jorrit J. Brave New Borders: The EU’s Use of New Technologies for the Management of Migration and Asylum. P. 226.

[11] VAVOULA, Niovi. Consultation of EU Immigration Databases forLaw Enforcement Purposes: a Privacy and Data Protection Assessment. P. 140.

[12] European Union Agency for Fundamental Rights. Under watchful eyes: biometrics, EU IT systems and Fundamental Rights. P. 19.

[13] Regulamento (CE) n.o 1987/2006, de 20 de Dezembro de 2006.

    Decisão 2007/533/JAI, de 12 de Junho de 2007.

[14] Regulamento (UE) n.o 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013.

[15] Regulamento n.o 767/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de julho de 2008 (alterado pelo Regulamento n.o 810/2009)

   Decisão-Quadro n.o 2008/633/JHA, de 23 de Junho de 2008.

[16] Estabelecimento de um Sistema de Entrada/Saída (EES) para registo dos dados das entradas e saídas dos nacionais de países terceiros aquando da passagem das fronteiras externas da UE. Resolução legislativa do Parlamento Europeu, de 25 de outubro de 2017.

[17] Regulamento (UE) 2018/1240 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de setembro de 2018.

[18] Regulamento (UE) 2019/816 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019.

[19] Comissão Europeia, Sistemas informáticos para combater a criminalidade e garantir a segurança das fronteiras da UE, disponível em: Sistemas informáticos para combater a criminalidade e garantir a segurança das fronteiras da UE – Consilium (europa.eu).

[20] VAVOULA, Niovi. The ‘Puzzle’ of EU Large-Scale Information Systems for Third-Country Nationals: Surveillance of Movement and Its Challenges for Privacy and Personal Data Protection. P. 3.

[21] VAVOULA, Niovi. Consultation of EU Immigration Databases forLaw Enforcement Purposes: a Privacy and Data Protection Assessment. PP. 173-176.

[22] Nos dois próximos blog posts da Linha de Investigação “Migração e Transformação Digital” iremos abordar de forma mais detalhada as questões éticas decorrentes da interoperabilidade das bases de dados e da recolha de dados em geral dos NPT’s, com especial ênfase nos direitos à privacidade e à proteção de dados pessoais, bem como do impacto da questão nos Direitos Fundamentais.


COMO CITAR ESTE BLOG POST:

Azevedo, Priscila; Solayman, Sofia. Bases de dados: agentes da mudança no controlo das migrações no contexto da UE. NOVA Refugee Clinic Blog, Fevereiro 2022, disponível em: <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=as-bases-de-dados-e-a-gestao-migratoria-na-uniao-europeia>

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About Priscila Azevedo

Aluna do 1º ano do Mestrado em Direito Internacional e Europeu e investigadora da NOVA Refugee Clinic, na linha de investigação Migração e Transformação Digital.