O REGULAMENTO DUBLIN III – OS CRITÉRIOS DE DETERMINAÇÃO DE RESPONSABILIDADE: BREVES NOTAS

Ariana Nunes Paraíso/ May 30, 2021/

Ariana Nunes Paraíso[1]

RESUMO

O Regulamento (UE) 604/2013 (Regulamento Dublin III) estabelece os critérios para a determinação do Estado Membro, no seio da União Europeia, responsável pela análise de um pedido de proteção internacional. Nesse prisma, o principal objetivo do Sistema de Dublin (no qual o Regulamento Dublin III se insere) é garantir a redução do número de requerentes de asilo em órbita e, simultaneamente, impedir a prática do asylum shopping, isto é, da apresentação de pedidos múltiplos em vários Estados-Membros. Nesse sentido, o Regulamento estabelece que apenas um Estado Membro será responsável pela análise de um pedido, responsabilidade essa determinada por via de uma lista de critérios, que são apresentados de forma hierárquica e que se apresentam como critérios especiais – atinentes aos menores e aos membros da família – e gerais. O presente texto visa, portanto, traçar breves notas sobre os critérios de determinação estabelecidos no Regulamento de Dublin.

PALAVRAS-CHAVE

Regulamento Dublin III, asilo, critérios especiais, critérios gerais, Estados Membros


O Regulamento (UE) 604/2013 (Regulamento Dublin III)[2] é um regulamento da UE que estabelece os critérios para a determinação do Estado Membro, no seio da União Europeia, responsável pela análise de um pedido de proteção internacional para requerentes de asilo.

Historicamente, consubstancia a terceira e, até à data, última reforma efetivada ao Sistema de Dublin, constituído por este Regulamento e, bem assim, pelo Regulamento EURODAC[3], responsável pelo estabelecimento de uma base de dados de impressões digitais, a nível europeu, para a entrada não autorizada na UE. Aprovado em 2013, entrou em vigor em julho do mesmo ano, com aplicação em todos os Estados Membros, à exceção da Dinamarca.

Um dos propósitos deste Regulamento é impedir aquilo que comumente se apelida de asylum shopping, isto é, que um requerente apresente pedidos em vários Estados Membros. Em paralelo, outro dos seus objetivos visa a redução do número de requerentes de asilo em órbita, que são enviados de um Estado Membro para Estado Membro.

Um dos pontos principais que o Regulamento Dublin III nos apresenta é o de que, uma vez inseridos no Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), todos os Estados Membros da União são responsáveis, de uma forma genérica, pela análise de todos os pedidos de proteção internacional apresentados. No entanto, apenas um Estado será responsável pela análise de um determinado pedido. De facto, e apesar de tal provisão ser já apresentada nos regulamentos anteriores, com o Regulamento Dublin III desenvolve-se uma base mais fortificada com este preceito que, no seu Capítulo V, define as obrigações que incorrem sobre o Estado responsável[4].

Ora, nesse prisma, a determinação de tal responsabilidade far-se-á lançando mão de um conjunto de critérios, hierarquicamente apresentados em sede do Capítulo III do Regulamento[5], e cuja ordem de apresentação deve ser respeitada.

De forma sintética, os critérios dividem-se em dois grandes grupos: por um lado temos os critérios especiais – atinentes aos menores e aos membros da família – e, por outro, os critérios gerais. De facto, e pese embora o elenco de critérios não tenha sofrido alterações face aos regulamentos anteriores, Dublin III vem especificar, de forma significativa, como aqueles devem ser aplicados[6].

§ CRITÉRIOS ESPECIAIS

1| MENORES

O primeiro ponto que deve ser abordado prende-se, grosso modo, com os menores e, neste âmbito, há que ter sempre em conta o Princípio do Superior Interesse da Criança[7] que deve, em todos os casos em que haja a sua aplicação, ser respeitado de forma cabal.

Em relação a este primeiro critério especial, há que ressaltar alguns pontos. Assim,

  • No caso de menor não acompanhado[8], o Estado Membro responsável será aquele onde se encontrar um membro da família ou irmão do menor[9];
  • No caso de o menor não acompanhado ser casado, o Estado responsável será aquele em que se encontrar um membro da família, um irmão ou outro adulto responsável, que poderá abarcar membros da família colateral[10] ou, inclusive, membros da família do cônjuge do menor[11];
  • Caso existam vários membros da família do requerente menor em vários Estados-Membros, o Estado responsável será determinado em função do superior interesse do menor não acompanhado[12];
  • Caso não haja nenhum membro da família, irmão ou outro familiar, o Estado responsável será aquele em que o menor não acompanhado tenha apresentado o seu pedido de proteção internacional[13]

2| FAMÍLIA OU RELAÇÕES FAMILIARES

Passando agora para o segundo critério especial, importa ressalvar que, também aqui, há um princípio basilar que deve ser respeitado ao longo de todo o processo e que respeita, em larga medida, à Unidade Familiar.

Neste ponto, cumpre, desde logo, fazer uma distinção inicial que se prende com o facto de os membros da família do requerente serem, ou não, beneficiários de proteção internacional.

  • Se um membro da família do requerente for beneficiário de proteção internacional num Estado Membro, esse mesmo Estado será o responsável pela análise do pedido (independentemente de a família ter sido constituída previamente – ou não – à chegada à Europa), devendo, para tanto, os interessados apresentar a sua manifestação de reunião com o membro da família, por escrito[14];
  • Caso um membro da família do requerente não beneficie de proteção internacional e seja, também ele, requerente, o Estado responsável será aquele onde o membro da família apresentou o seu pedido, devendo os interessados, mais uma vez, manifestar o seu interesse por escrito[15];

Se se verificar que existem vários membros da família em vários Estados Membros, o Estado responsável pela análise do pedido será aquele em que:

  • Existam mais membros da família[16]; ou
  • No caso de existir o mesmo número de membros da família, se encontre o membro mais idoso[17].

No que respeita ao critério familiar, há ainda uma outra situação que merece ressalva e que se prende, grosso modo, com os dependentes[18]. Assim,

  • Numa situação de gravidez, nascimento recente de um filho, doença ou deficiência grave ou idade avançada, os Estados-Membros devem, em teoria, manter juntos ou tentar reunir o requerente dependente com o membro da família, ou o membro da família dependente com o requerente, quando verificados alguns pressupostos[19]:

– Laços familiares já existentes no país de origem;

– Pessoa ou requerente capaz de prestar assistência à pessoa dependente;

– Manifestação de interesse por escrito.

  • Caso o membro da família e o requerente se encontrem em Estados-Membros diferentes[20]:
  • O Estado responsável será aquele em que o filho, irmão, pai ou mãe do requerente tiver residência legal; exceto se
  • O estado de saúde do requerente o impedir de se deslocar, situação em que o Estado onde o mesmo se encontre se torna responsável, não sendo, todavia, responsável por garantir as custas de deslocação e do procedimento que, enfim, incorrem sobre os interessados que, uma vez mais, devem manifestar o seu pedido por escrito.

Uma vez descortinados quais os critérios especiais presentes no Regulamento, passar-se-á, então, à análise dos Critérios Gerais.

§ CRITÉRIOS GERAIS

3| VISTOS OU AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA

O primeiro dos critérios gerais postula que o Estado Membro que autorizou a entrada ou permanência do requerente deverá ser responsável pelo pedido a ser analisado[21]. No entanto, este critério não se aplica nos casos em que o visto válido tenha sido emitido em nome de outro Estado Membro[22]. Tal situação poderá ocorrer, ao abrigo do Direito da UE, nos casos em que no país de origem o requerente solicite proteção ou concessão de vistos e autorização de residência em qualquer consulado de um outro Estado Membro, quando ali não haja representação diplomática do Estado destino[23].

Verificando-se a situação de um requerente ter vários títulos de residência ou vários vistos válidos emitidos por diferentes Estados-Membros:

  • O Estado responsável será aquele que conceda o título de residência mais longo[24]; ou,
  • Nos casos em que o título seja emitido pelo mesmo período temporal, será aquele que cessar mais tarde[25].

Em contraste, se o requerente for titular de vários títulos de residência ou vistos caducados (há menos de 2 anos e há menos de 6 meses, respetivamente), emitidos por diferentes Estados-Membros:

  • O Estado responsável será aquele que emitiu o título de residência ou visto há menos tempo caducado[26]; mas
  • Se o(s) título(s) estiver(em) caducado(s) há mais de 2 anos e o(s) visto(s) há mais de 6 meses, o Estado responsável será aquele em o pedido de proteção internacional for apresentado.

4| ENTRADA IRREGULAR/ILEGAL

Se o requerente entrou, irregularmente, num Estado Membro, o critério estipula que será responsável o Estado de primeira entrada. No entanto, essa responsabilidade cessa após 12 meses, período após o qual já não há lugar à aplicação deste critério[27].

Assim, se o requerente entrou irregularmente há mais de 12 meses,

  • O Estado responsável será aquele em que o requerente permaneceu por um período ininterrupto de 5 meses, antes da apresentação do pedido de proteção internacional[28]; mas
  • Se o requerente tiver permanecido 5 meses ininterruptos em vários Estados-Membros, o Estado responsável será aquele em que o requerente permaneceu mais recentemente[29].

5| ZONAS DE TRÂNSITO INTERNACIONAL

Nos casos em que o pedido de proteção internacional é apresentado em zona de trânsito, dita o Regulamento que o Estado responsável será, então, o Estado em que se encontre o aeroporto. Neste ponto, cumpre ressalvar que, em zonas aeroportuárias, não há lugar à análise de Dublin, pelo que o pedido deverá ser analisado num período de 7 dias.

§ CRITÉRIO SUPLETIVO

O Regulamento Dublin III prevê, ainda, as situações em que, feita a análise hierárquica de cada um dos critérios, não seja possível determinar qual o Estado Membro responsável pela análise do pedido. Nessa medida, aplicar-se-á, então, o critério supletivo[30] que dita que o Estado responsável será aquele em que o pedido tenha sido apresentado.

§ CLÁUSULA DE SALVAGUARDA

Aspeto importante no Regulamento Dublin III surge em sede do seu art. 3º, em que é apresentada a Cláusula de Salvaguarda[31]. Com efeito, este princípio, que tem a sua origem na jurisprudência da União[32], proíbe a transferência de um requerente para o Estado responsável pela análise do pedido, quando este apresentar falhas sistémicas que o impeçam de garantir todos os meios materiais de entrada e permanência no território e, em sentido lado, todas as condições de acolhimento. Nesse prisma, é igualmente introduzido um mecanismo que cria as bases de um plano de ação preventivo e de gestão de crises[33], nos casos em que a aplicação do Regulamento possa ser posta em causa ou quando se verifiquem problemas no próprio funcionamento do sistema de asilo de um Estado Membro.

Neste âmbito, cumpre também ressalvar que os Estados-Membros mantêm a faculdade de enviar um requerente para um país terceiro que, durante a análise de Dublin, tenha sido considerado seguro. Assim, a par dos critérios de análise de determinação do Estado responsável, dentro da UE, se se verificar que o requerente iniciou um processo de asilo, o requerente pode ser transferido, para que se dê continuidade ao mesmo, sem prejuízo das regras e garantias previstas na Diretiva 2013/32/UE e, bem assim, do princípio de non-refoulement.

§ CLÁUSULAS DISCRICIONÁRIAS

Dublin III prevê ainda a situação em que um Estado Membro que, de antemão e por força dos critérios do regulamento, não tem competência num dado processo, decide dar continuidade à análise do pedido de proteção internacional. Nesse prisma, torna-se, de forma voluntária, o Estado responsável, passando a assumir todas as obrigações inerentes à responsabilidade do acolhimento do requerente, enquanto o pedido estiver a ser analisado.

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora não isento de críticas e leituras diferentes, o Regulamento Dublin III, e por extensão os critérios (hierárquicos) que apresenta para a determinação do Estado Membro responsável, consubstancia um importante normativo para garantir, a (todos os) nacionais de Estados terceiros que procuram asilo no âmbito de aplicação do SECA, o acesso à determinação do estatuto e à proteção internacional[34].

Não obstante, amiúde se apresentam alguns obstáculos à aplicação do regulamento, obstáculos esses que se devem a uma panóplia de situações, tais como deficiências estruturais, dificuldades na determinação do Estado responsável, procedimentos longos e complexos ou, até mesmo, as próprias tendências dos fluxos migratórios[35].

Nesse sentido, vozes há que apoiam a revisão e reforma daquele regulamento que, pese embora tenha visto o seu papel reforçado e confirmado com a apresentação do Pacto Europeu em Matéria de Imigração e Asilo, para muitos não conseguiu fazer frente ao “maior desafio migratório desde a Segunda Guerra Mundial”[36].


FORMA DE CITAR:
A. N. PARAÍSO, O Regulamento Dublin III – Os Critérios de Determinação de Responsabilidade:  Breves Notas, NOVA Refugee Clinic Blog, Maio 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=o-regulamento-dublin-iii-os-criterios-de-determinacao-de-responsabilidade-breves-notas>


[1] Doutoranda em Direito e Segurança na NOVA School of Law. Integra o Grupo de Prática da NOVA Refugee Clinic – Legal Clinic e é colaboradora do Projeto Intra-África Pax Lusófona.

[2] Regulamento (UE) n.o 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho

[3] Regulamento (UE) nº 603/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho

[4] DESIMPELAERE, Katrien – The Dublin Regulation: Past, Present, Future. [s.l.]: Ghent University – Faculty of Law, 2015. P. 74.

[5] Cfr. no n.º1 do seu art. 7.º do Regulamento Dublin III.

[6] MITCHELL, Jason – The Dublin Regulation and Systemic Flaws. San Diego International Law Journal. ISSN 1539-7904. 18:2 (2017): p. 301.

[7] Cfr. art. 6.º, n.º1 do Regulamento Dublin III.

[8] Cfr. o n.º1, do art. 8.º do Regulamento Dublin III.

[9] Neste ponto, cumpre referir que, fazendo jus ao Princípio do Superior Interesse da Criança, Dublin estendeu o escopo deste artigo aos irmãos do menor acompanhado, por forma a garantir uma proteção mais alargada daquele menor.

[10] Como tios ou primos.

[11] Também aqui se verifica uma extensão do que é entendido por família, por forma a, mais uma vez, garantir uma (maior) proteção efetiva do menor.

[12] Cfr. os arts. 8.º, n.º3 e 6.º, n.os 1 e 3 do Regulamento Dublin III.

[13] Cfr. o n.º 4 do art. 8.º do Regulamento Dublin III.

[14] Cfr. art. 9.º do Regulamento Dublin III.

[15] Cfr. art. 10.º do Regulamento Dublin III.

[16] Cfr. art. 11.º, al. a) do Regulamento Dublin III.

[17] Cfr. art. 11.º, al. b) do Regulamento Dublin III.

[18] Cfr. o art. 16.º do Regulamento Dublin III.

[19] Cfr. o n.º1 do art. 16.º do Regulamento Dublin III.

[20] Cfr. o n.º2 do art. 16.º do Regulamento Dublin III.

[21] Cfr. o n.º1 do art.12.º do Regulamento Dublin III.

[22] Cfr. o n.º2 do art. 12.º do Regulamento Dublin III.

[23] Cfr. art. 5.º, n.º 4, e 8.º do Regulamento (CE), do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de julho.

[24] Cfr. art. 12º, n.º 3 al. a) do Regulamento Dublin III.

[25] Ibidem.

[26] Cfr. o n.º 4 do art. 12.º do Regulamento Dublin III.

[27] Cfr. art. 13º, n.º 1 do Regulamento Dublin III.

[28] Cfr. art. 13.º, n.º 2, primeira parte do Regulamento Dublin III.

[29] Cfr. art. 13º, nº2, segunda parte do Regulamento Dublin III.

[30] Cfr. art. 3º, nº2, primeira parte do Regulamento Dublin III.

[31] Cfr. art. 3.º, n.º 2, segunda parte do Regulamento Dublin III.

[32] Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 21 de dezembro de 2011, N.S./M.E., Processos apensos C-411/10 e C-493/10, ECLI:EU:C:2011:865.

[33] Cfr. art. 33.º do Regulamento do Regulamento Dublin III.

[34] MAIANI, Francesco – The Reform of the Dublin III Regulation. DIRECTORATE GENERAL FOR INTERNAL POLICIES POLICY DEPARTMENT C: Citizens’ Rights and Constitutional Affairs (2016)

[35] Cfr. COMISSÃO DAS LIBERDADES CÍVICAS, DA JUSTIÇA E DOS ASSUNTOS INTERNOS – Relatório sobre a aplicação do Regulamento Dublin III. PE648.425v03-00 (2020), pp. 7 e ss

[36] Idem, p. 4

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About Ariana Nunes Paraíso

Doutoranda em Direito e Segurança na NOVA School of Law, instituição onde, em 2019, concluiu o Mestrado em Direito e Segurança. É auditora de segurança interna e jurista, licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2016).