O Princípio de Non-Refoulement à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: O Único Limite Absoluto à Expulsão? (Parte 2)

João Athayde Varela/ January 11, 2021/

João Athayde Varela[1]

            2. Jurisprudência do TEDH

            Terá sido o caso Soering v. Reino Unido[2]  a assinalar um antes e depois na compreensão que o TEDH passa a revelar sobre a CEDH – mais concretamente, o seu artigo 3.º – como instrumento de proteção dos cidadãos estrangeiros perante uma decisão de afastamento que lhes é hostil. No citado Acórdão, discute-se a extradição de um cidadão alemão, que vive no Reino Unido, para os Estados Unidos da América (EUA), mais concretamente o Estado da Virgínia, pela prática confessa, neste último país, de um crime de assassinato punível com a pena de morte. Atendendo às circunstâncias concretas da situação sub judicio: a idade de 18 anos do agente à data dos factos, a sua condição mental reveladora de uma acentuada fragilidade psíquica, o tempo longo de 6 a 8 anos, em regime carcerário rigoroso, que antecede a execução da pena capital, a alternativa da sua extradição para a República Federal da Alemanha (RFA) onde a pena de morte está abolida, etc…, o coletivo de juízes acaba por concluir que, havendo o risco sério do suspeito ser condenado, nos EUA, à pena de morte, a sua extradição para este país equivaleria a sujeitá-lo ao “síndrome do corredor da morte”, revelando-se, portanto, contrária à proibição prevista no art. 3.º, CEDH.

            Entretanto, afirma-se, também, que, contrariamente ao que alega o Governo britânico, é o Estado, que dá cumprimento ao pedido de extradição, o único responsável perante o tribunal europeu pela sobredita violação: “ na estrita medida em que uma responsabilidade se encontra ou pode encontrar-se inscrita no espaço normativo da Convenção, essa responsabilidade será in casu a do Estado contratante que extradita, em virtude de uma decisão que tem como resultado direto a exposição do visado a maus tratos proibidos[3]”.

            Já no caso Ahmed v. Áustria[4], respeitante a um cidadão estrangeiro oriundo da Somália que, tendo adquirido o estatuto de refugiado na Áustria, pratica, no país de acolhimento, um crime de roubo, na forma tentada, perdendo por força deste facto aquele estatuto e sendo a seguir ordenada a sua expulsão para o país de origem, o Estado austríaco argumenta, nas alegações produzidas perante o TEDH, que não está obrigado, à luz do artigo 33.º, n.º 2, da Convenção de Genebra[5], a verificar a justiça da condenação nem a situação existente na Somália: afinal, o indivíduo em causa acabou por perder o estatuto especial de que era beneficiário em virtude do cometimento de uma infração criminal grave. Todavia, o TEDH entende que o art. 3.º, CEDH, constitui uma garantia mais ampla contra a tortura e os tratamentos desumanos ou degradantes comparativamente ao citado preceito da Convenção de Genebra, não apenas porque o respectivo âmbito subjetivo não se reduz aos refugiados, mas, também, na medida em que a sua aplicação não pressupõe, ao contrário do que sucede com a outra norma de direito internacional convencional, um juízo de ponderação entre o risco para o país de acolhimento na continuidade da presença da pessoa objeto da decisão de afastamento e o perigo que ela correria no país de destino. Neste sentido e conforme sublinha Morgades Gil, “de forma más general, incluso puede afirmarse que las excepciones a la regla del non-refoulement establecidas en la Convención de Genebra de 1951 ya no son aplicables en casos en que vulnerarían principios o normas consuetudinarias imperativas o inderrogables, como la que prohíbe el riesgo de ser sometido a tortura[6]”. Em suma e segundo o TEDH, que conclui configurar in casu a execução da decisão de expulsão uma violação do art. 3.º, CEDH, o carácter absoluto da proibição contida nesta norma legal obriga à desconsideração da concreta conduta do visado, ainda que ela se apresente como inaceitável ou perigosa.

            Revela-se, também, paradigmática a apreciação feita pelo TEDH ao pedido apresentado contra a Itália pelo cidadão tunisino M. Nassin Saadi, titular de uma autorização de residência temporária naquele país e sujeito, dias antes do respetivo prazo expirar, a prisão preventiva por existirem fortes indícios da prática de um crime de terrorismo[7]. Apesar do tribunal de 1.ª instância italiano ter procedido à alteração da qualificação jurídica dos factos, considerando que o arguido integraria não uma organização terrorista internacional, mas, sim, uma associação criminosa dedicada à recetação de documentos desviados e posterior falsificação dos mesmos (“de modo especial, faltava a prova de que o requerente e os seus cúmplices teriam decidido ‘converter’ a sua fé radical em ações violentas com as características próprias do terrorismo[8]”), determina que, após o cumprimento da pena de 4 anos e 6 meses de prisão efetiva, aquele seja expulso de Itália. Entretanto e na mesma data, um tribunal militar tunisino, promovendo a audiência de julgamento na ausência do acusado, condena-o a 20 anos de prisão por pertencer a uma organização terrorista internacional e incitar à prática de atos terroristas. Estando ainda pendente o recurso que Saadi interpõe da decisão judicial proferida em 1.ª instância, mas tendo-se esgotado o seu tempo de permanência na prisão e sendo, consequentemente, posto em liberdade, é emitida contra ele uma ordem de expulsão para a Tunísia, assinada pelo ministro italiano do Interior, ao abrigo de um decreto-lei contendo medidas urgentes de combate ao terrorismo internacional, uma vez que “o seu comportamento perturbava a ordem pública e colocava em perigo a segurança nacional[9]”.

            Quanto ao “juízo de direito” promovido pelo TEDH, à luz do art. 3.º, CEDH, sobre os factos acima descritos, destacamos as conclusões seguintes: a) recaindo sobre o interessado o ónus da prova do risco real de maus tratos proibidos, o TEDH, na apreciação que faz destas consequências, tomará em consideração, por um lado, a situação geral no país de destino e, por outro, as circunstâncias específicas do requerente; b) o “risco” que o expulsando, previsivelmente, corre e a “perigosidade” que ele, eventualmente, representa são realidades incomparáveis: isto é, “a perspectiva de que a pessoa constitui uma ameaça grave para a coletividade se ela não for expulsa não diminui em nada o risco de que a mesma seja sujeita a tratamentos desumanos ou degradantes caso seja afastada[10]”. Destarte e estimando-se ter sido produzida prova suficiente no sentido da existência in casu de um risco real para o interessado de maus tratos proibidos, conclui-se pela violação do art. 3.º, CEDH, na hipótese da Itália concretizar a ordem de expulsá-lo para a Tunísia.

            3. Conclusões

            Esta jurisprudência reiterada do TEDH demonstra à saciedade a interpretação que ele advoga do artigo 3.º, CEDH, em conformidade com a qual se consagra aí um direito individual absoluto a não ser objeto de torturas, penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, não suscetível de derrogação e não necessitado de um qualquer juízo de justo equilíbrio com alguma exigência social que se encontre em concurso (negativo) com ele.  

            Tudo isto assume, aliás, uma acuidade particular quando se discute – como sucede no caso Saadi v. Itália – a questão do terrorismo. Neste sentido, o próprio TEDH reconhece “que os Estados se deparam atualmente com dificuldades consideráveis quando procuram proteger as suas populações contra a violência terrorista (…). O Tribunal não poderia, portanto, subestimar a amplitude do perigo que representa hoje o terrorismo e a ameaça que ele projeta sobre a coletividade[11]”. Em todo o caso, tal luta não poderá ser desenvolvida a expensas dos princípios e valores em que assenta a civilização ocidental e que a CEDH reflete e densifica, designadamente a proibição de tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes. Como sublinha o juiz Myjer, “não há nada de mais contraproducente do que combater o fogo com o fogo, dar aos terroristas o pretexto ideal para se transformarem em mártires e acusarem as democracias de fazerem uso de dois pesos, duas medidas. Tal atitude serviria apenas à criação de um terreno favorável a uma radicalização ainda maior e ao recrutamento acrescido de futuros terroristas[12]”.

            Nestes termos e se retomarmos o dito na parte 1. do presente artigo, constatar-se-á que, no caso especial da pena acessória de expulsão, podendo, por um lado, esta ser aplicada mesmo a cidadãos estrangeiros com residência permanente desde que a sua conduta se traduza em perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional e estando, por outro lado, os limites a essa aplicação ou à sua execução (incluindo o próprio princípio de non-refoulement, tal como está consagrado na Convenção de Genebra) subordinados a critérios de exclusão, só o artigo 3.º, CEDH, ou – se preferirmos – o princípio de non-refoulement à luz deste artigo[13], funcionará, na perspetiva do TEDH, como “limite absoluto”[14] à execução daquela pena, na hipótese desta ser aplicada contra um cidadão estrangeiro oriundo de um país em que haja o risco sério de vir a ser sujeito a sevícias interditas. Efetivamente, as circunstâncias concretas terão de ser outras que não as previstas, abstratamente, naquele artigo para que tal execução se concretize, nomeadamente:

  1. outro país de destino, onde não se verifiquem as práticas proibidas pelo art. 3.º, CEDH, na interpretação ampla que o TEDH faz do mesmo[15], declarar que aceita acolher o expulsando;
  2. houver uma alteração comprovada das condições internas em que se funda o risco sério de maus tratos proibidos, de modo a permitir o afastamento da pessoa visada para o país da sua nacionalidade ou residência habitual.

[1] Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e Investigador integrado do Centro de Estudo & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS) da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

[2] Soering v. Reino Unido, n.º 14038/88, de 7 de julho de 1989.

[3] Soering v. Reino Unido, & 91 (tradução a partir da versão francesa).

[4] Ahmed v. Áustria, n.º 25964/94, de 17 de dezembro de 1996.

[5] Vide referência, no início deste artigo, ao art. 32.º, n.º 2, Convenção de Genebra.

[6] MORGADES GIL, Sílvia. “La protección de los demandantes de asilo por razón de su vulnerabilidad especial en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de los Derechos Humanos”, em Revista de Derecho Comunitario Europeo, n.º 37, Madrid, setembro a dezembro 2010, p. 809.  

[7] Saadi v. Itália, n.º 37201/06, de 28 de fevereiro de 2008.

[8] Ibidem, & 21 (tradução a partir da versão francesa).

[9] Ibidem, & 32 (tradução a partir da versão francesa).

[10] Ibidem, & 139 (tradução a partir da versão francesa). Na sua “declaração de voto” concordante, in fine, o juiz Zupančič afirma a este respeito que “é (…) extremamente importante entender o parágrafo 139 do acórdão como um imperativo categórico de proteção dos direitos individuais. A única maneira de iludir esta necessidade lógica consistiria em afirmar que os indivíduos em causa não merecem a tutela dos seus direitos humanos (…) porque são menos que pessoas” (tradução a partir da versão francesa).  

[11] Saadi v. Itália, & 137 (tradução a partir da versão francesa).

[12] “Declaração concordante do juiz Myjer, à qual se junta o juiz Zagrebelsky”, em Saadi v. Itália (tradução a partir da versão francesa).

[13] Vide o caso Ahmed referido em texto.

[14] De acordo com a doutrina pacificamente aceite, o direito convencional internacional enquanto vincular o nosso país prevalece sobre o direito ordinário interno (cfr. art. 8.º, n.º 2, CRP).

[15] Como se disse já em texto, o TEDH considera, não apenas a situação geral do país em causa tal como ela é retratada por organizações internacionais de referência (v.g., Amnistia Internacional), mas ainda as circunstâncias particulares do visado, particularmente a sua especial vulnerabilidade.

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About João Athayde Varela

Licenciado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduou-se pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da mesma Faculdade e Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Nova School of Law.