A inversão dos papéis sociais em função do género no âmbito de uma situação de emergência

Joana Santos Graça/ January 23, 2021/

Joana Santos Graça[1]

A etimologia da palavra emergência provém do latim emergere, que significa “emergir, surgir ou aparecer”. Não obstante, a valorização social da palavra remete para uma situação inesperada e que exige reação imediata (O’Conner, Kellerman, 2019), de que é exemplo a expressão “emergência humanitária”, a qual pode ser definida como um:

evento ou uma série de eventos que representam uma ameaça crítica para a saúde, segurança ou bem-estar de uma comunidade ou outro amplo grupo de pessoas, normalmente numa grande área geográfica” (London School of Hygiene & Tropical Medicine, s/d).

Mas será que uma emergência humanitária afeta de igual modo diferentes pessoas? A resposta é não. Conforme Crenshaw menciona “different things make different women vulnerable” (2017). Neste caso, o mesmo se diga em relação a qualquer pessoa em situação de emergência humanitária, cujo impacto (independentemente de resultar de um desastre natural ou de uma intervenção humana – por exemplo, conflitos armados), depende das circunstâncias socio-económicas-legais que afetam a população num determinado território, num determinado período de tempo e no âmbito de uma determinada conceção socio-legal de papéis sociais, nomeadamente em função do género.  

Acresce ainda que a própria população é heterogénea, pelo que os diferentes indivíduos que compõe a população de um território atingido por uma emergência humanitária serão afetados de forma desigual. Assim, diferentes fatores de identidade de cada pessoa têm um impacto diferente, por exemplo: idade, poder económico, deficiência motora ou cognitiva, etnia, religião, entre outros (Crenshaw, 1989). Desta forma, as situações de emergência não são “gender neutral” (Gellner, 1989: 3-4, 10, 41 e 45).

1. O conceito de género

A percepção acerca do conceito de género, da sua mutação e dos seus impactos são relativamente recentes. Freedman realça que género “is a relational concept, it is defined in terms of relationships, between men and women, between maleness and femaleness, or masculinities and femininities” (2007: 16).

Apesar de a igualdade de género estar consagrada internacionalmente enquanto direito humano, há uma discrepância entre o reconhecimento teórico e legal e o nível de implementação. Há, ainda, um longo caminho a percorrer para assegurar que “human rights are women’s rights… And women’s rights are human rights once and for all”  (Clinton, 1995). As assimetrias quanto à organização social, ao exercício de direitos e às responsabilidades agravam o nível e a amplitude da implementação legal da igualdade de género. A discriminação e a violência sexual e de género são transversais a todas as sociedades e comunidades, fruto da predominância do sistema patriarcal: sistema que assegura o domínio dos homens sobre as mulheres, em múltiplas estruturas sociais, de que são exemplo a política, a economia, a religião (Morais, 2020). Este domínio da masculinidade hegemónica (Connell, 2005) no espaço público e privado é historicamente comum à esmagadora maioria das comunidades e sociedades mundiais. A ocorrência de uma crise humanitária acaba por exacerbar a discriminação e violência sexual e de género que afeta com maior prevalência mulheres e raparigas, fruto da assimetria de poder com base nos papéis sociais em função do género (Neumayer and Plumper, 2007).

2. Papéis sociais em função do género 

Os papéis sociais em função do género (“gender roles”) são o “conjunto de regras que uma sociedade define para o género masculino ou feminino” (Sojo, et al., 2005), representações sociais do comportamento humano em função do género, às quais é atribuída uma valorização ou desvalorização social de forma a encorajar determinados comportamentos e desencorajar outros. Tais comportamentos expectáveis em função do género são mutáveis ao longo do tempo, do espaço e da cultura, o que inclui situações de emergência humanitária (Yannoulas, apud Rabelo, 2000).

3. A inversão dos papéis sociais em situações de emergência humanitária 

O contexto de emergência humanitária tem implicação na alteração das dinâmicas de poder inerentes aos papéis sociais em função do género, podendo incluir, em contexto de emergência humanitária, uma suspensão ou transferência dos mesmos. De acordo com Taylor, os tradicionais papéis de género ficam suspensos durante e após uma emergência humanitária, fruto da necessidade de adotar novos papéis (Taylor apud Fothergill, 1999). Ao passo que Forrest defende que, durante uma emergência humanitária, há uma “transferência de papéis”, apesar de se manter uma perspectiva tradicional quanto a cada género (Forrest apud Fothergill, 1999). Independentemente de se advogar por uma suspensão ou transferência, é inegável a mudança drástica que ocorre no tecido e estruturas sociais, aquando da ocorrência da emergência humanitária.

Tal mutação tem origem na dependência económica (e não só) que é comum a homens e mulheres face às ONGs (Gebreyousus, 2013). Havendo a perda do papel de garante ao nível familiar por parte dos homens, muitas mulheres e meninas passam a ser determinantes no sustento da família (Marchesini, 2020). Esta inversão dos papéis de género, fruto da alteração das dinâmicas de poder decorrentes do contexto de emergência humanitária, pode redundar no aumento do risco de sobreviver a violência sexual e de género (Morais, 2020). Consequentemente, em consequência do agravamento da incidência de violência de género, as mulheres e crianças, as quais representam mais de 75% da população refugiada e pessoas deslocadas em decorrência de conflitos armados, perseguição e desastres naturais (United Nations Population Fund, s/d), enfrentam um risco acrescido de violência em função do género (Morais, 2020).

4. Conclusões

Os papéis sociais têm vindo a mudar ao longo do tempo, espaço e cultura, sendo testemunha da luta pela eliminação da violência de género e pela igualdade de género a qual está  longe do fim. As dificuldades que atingem as mulheres e raparigas em contexto de emergências humanitárias têm influência no grau de vulnerabilidade vivida, operando uma potencial, inversão de papéis sociais. Seja através da suspensão, seja através da transferência, o certo é que as mulheres assumem novos papéis num contexto de emergência humanitária. levando-as a enfrentar um aumento exponencial de riscos, que convergem geralmente com a agravação do risco de sobreviver a uma violência de género. Não obstante, e apesar dos obstáculos enfrentados, muitas vezes é nestas crises que, paradoxalmente, algumas mulheres assumem responsabilidades decisivas no âmago do agregado familiar, demonstrando capacidade de tomar decisões, liderar e providenciar pelas suas famílias; manifestando, verdadeiramente, que são “the heart of the transition from crisis to stability at the family, community and national level” (CARE. Report, 2021).

BIBLIOGRAFIA:

CARE. Report: Women and Girls in Emergencies. Acedido em 19 de Janeiro de 2021, disponível em:
https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/CARE_Women-and-girls-in-emergencies_2018.pdf

CLINTON, (1995). No seu discurso a propósito da 4.ª Conferência Mundial da ONU sobre as Mulheres em Pequim, a 5 de Setembro de 1995, conforme consultado em linha em:
http://www.un.org/esa/gopher-data/conf/fwcw/conf/gov/950905175653.txt

CRENSHAW, K. (1989). Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. Univ. Chic. Leg. Forum

CRENSHAW, K.  (2017), Ted Talk. Acedido em 21 de Janeiro de 2021, disponível em:
https://www.ted.com/talks/kimberle_crenshaw_the_urgency_of_intersectionality

CONNELL, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Gender & Society.

FREEDMAN, J. (2007). Gendering the International Asylum and Refugee Debate Palgrave MacMillan.  

FOTHERGILL, A. (1999). Women’s roles in a disaster. Applied Behavioral Science Review, pp. 125–143. 

GEBREYOUSUS, Y. (2013). Women in African Refugee Camps – ender-Based Violence against Female Refugees: The Case of Mai Ayni Refugee Camp, Northern Etiopia Anchor Academic Publishing.

GELLNER, M. (1989). Sexual Violence Against Women Refugees – From Private Sorrows to International Politics, New Jersey: Rutgers University.

LONDON SCHOOL OF HYGIENE & TROPICAL MEDICINE. Health in Humanitarian Crises: Characteristics of Humanitarian Crises. Acedido a 9 de Janeiro de 2020, disponível em:
https://www.futurelearn.com/info/courses/health-crises/0/steps/22887.

MARCHESINI, L. (2020). Women surviving during humanitarian emergencies. Linha de Investigação Migração e Género – Episódio 2 (16 dias de ativismo). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Xb_Z6cQOxIo&t=806s

MORAIS, T. (2020). “Dinâmicas de poder subjacentes à Violência Sexual e de Género: os casos ocorridos durante o ciclo de refúgio” in Atas da Conferência: Igualdade de Género e Mobilidade 153-161.

NEUMAYER, E.; PLÜMPER, T., (2007). The Gendered Nature of Natural Disasters: The Impact of Catastrophic Events on the Gender Gap in Life Expectancy, 1981–2002, Annals of the Association of American Geographers, 97:3, 551-566.

O’CONNER, P. T.; STEWART KELLERMAN (2019). Grammarphobia: “How ‘emergency’ emerged”. Acedido em 8 de Janeiro de 2020, disponível em https://www.grammarphobia.com/blog/2019/05/emerge-emergency.html; (Tradução da versão inglesa).

RABELO, A. O. (2010). Contribuições dos estudos de género às investigações que enfocam a masculinidade. Acedido a 21 de Janeiro de 2021, disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/aeq/n21/n21a12.pdf

SOJO, D.; SIERRA, B.; LÓPEZ, I. (2005). Health and Gender: a practice guide for practioners in Co-operation. Madrid.

UNITED NATIONS POPULATION FUND, (s/d). Protecting Women in Emergency Situations, disponível em:
https://www.unfpa.org/resources/protecting-women-emergency-situations.


[1] Mestranda em Direito Forense e Arbitragem pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

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About Joana Santos Graça

Licenciada em Direito e Mestranda em Direito Forense e Arbitragem na NOVA School of Law. É também Mediadora de conflitos formada pelo Curso de Formação de Mediadores de Conflitos pela Nova School of Law.