O Envolvimento de Refugiados e Requerentes de Asilo em “Correios De Droga”: Proteção Do Ordenamento Jurídico Português

Diogo Santos Sereno/ February 25, 2021/

Diogo Santos Sereno [1]

Resumo:

Não há grandes informações sobre o envolvimento de Refugiados ou Requerentes de Asilo nos chamados “correios de droga”, conduta inserida no crime de tráfico de droga, apesar de surgirem casos como o dos Rohingya[2], em que traficantes de droga se aproveitam da condição fragilizada destas pessoas para levá-las a transportar estupefacientes como forma de escape às suas miseráveis condições de origem. Não há qualquer regime jurídico específico de proteção penal dos mesmos, sendo este artigo uma tentativa de entender quais as hipóteses de proteção que o ordenamento jurídico português oferece aos refugiados e requerentes de asilo, nesta situação.

Palavras-chave: refugiados, asilo, correios de droga, entrada de estrangeiros em território nacional.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Não há grande informação sobre o número de refugiados ou requerentes de asilo que possam estar envolvidos nos chamados “correios de droga”. O ordenamento jurídico português insere essa conduta no crime de tráfico de droga, previsto, nas suas múltiplas modalidades de ação, nos arts. 21.º e ss., DL 15/93, sendo diversas as penas cominadas consoante a gravidade relativa das respectivas condutas: isto é, as penas mais leves devem caber àqueles comportamentos criminosos que indiciam “uma diminuição considerável da ilicitude do facto, sendo índices dessa diminuição, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a quantidade ou qualidade do produto traficado ou a traficar.”[3]

Colocar-se-á a questão se fará sentido incluir no crime de tráfico de menor gravidade, e em específico, no conceito de “diminuição considerável da ilicitude”, a conduta de quem for forçado ou coagido a transportar droga. Olhando para a jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal de Justiça[4], entende-se que essa avaliação será sempre do Tribunal que, ao apreciar o grau de ilicitude do facto, traça a linha que separa o crime de tráfico de menor gravidade em função da concreta ilicitude do facto sub judicio, devendo, contundo, fundamentar de facto e de direito esse seu juízo. O Juiz tem a ainda a possibilidade de, face às circunstâncias, decidir por uma atenuação especial da pena, nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal Português.

Acontece que, por regra, os juízes portugueses são pouco ou nada condescendentes com os “correios de droga”, entendendo que se trata de uma modalidade, particularmente, grave de distribuição da droga. Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que o facto de o arguido ser “um correio” não atenua a culpa do mesmo, já que o transporte da droga a troco de algo é tão ou mais grave do que a sua venda direta[5]. Será necessário punir esse crime, com base nas exigências de prevenção geral e especial do Direito Penal, particularmente, neste caso, as de prevenção geral negativa que, como FIGUEIREDO DIAS as define, usam o mal infligido ao criminoso como exemplo do que acontece aos que transgridem a lei, levando outros indivíduos a recear que lhes sejam aplicadas penas e, consequentemente a desistir ou evitar o cometimento de crimes.[6] Não há, assim, uma desvalorização generalizada sobre o papel dos “correios de droga”, sendo que deverá olhar-se à situação específica, em sede de ilicitude, tendo em conta as circunstâncias singulares do caso sub judice e revelando-se, sobretudo, determinante nessa avaliação a qualidade e/ou quantidade de produto apreendido.

2. A PROTEÇÃO DO REFUGIADO ENVOLVIDO EM “CORREIOS DE DROGA” NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS

Poder-se-á aqui então analisar qual o tipo de proteção legal que pode ser dada a um refugiado envolvido num crime, em especial, o de tráfico de droga por via dos denominados “correios de droga”. Apesar de o ordenamento jurídico português não ter nenhum regime especial de proteção nestes casos, há várias questões jurídico-penais que poderão oferecer alguma proteção ao Refugiado ou Requerente de Asilo envolvido nesta situação. A primeira proteção dada, é desde logo, a relativa à aplicação da pena acessória de expulsão, nos termos do art. 34.º, n.º1 do DL n.º 15/93[7] e do art. 151.º da Lei 23/2007, conhecida como Lei de Estrangeiros[8]. Ao aplicar-se a mesma, o Tribunal deve ter em conta, na aplicação da pena acessória, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal, sendo que terá sempre que justificar suficientemente a sua aplicação. Tem de ponderar ainda razões de ordem, segurança e saúde pública que justifiquem tal aplicação.[9]

Contudo, nessa aplicação, encontramos um limite à mesma no que toca ao regime aplicado aos refugiados. Com efeito, no art. 134.º, Lei de Estrangeiros, sob epígrafe “Fundamentos da decisão de afastamento ou de expulsão” é mencionado, no n.º 3, que “aos refugiados aplica-se o regime mais benéfico resultante de lei ou convenção internacional a que o Estado Português esteja obrigado”. Ademais, à decisão e aplicação da pena pelo Tribunal surgem limites aquando do envolvimento do Refugiado na prática de um crime. Com efeito, pelo princípio do non refoulement, se ao estrangeiro for aplicada pena acessória de expulsão, este não pode ser expulso para “um território onde a sua vida ou liberdade sejam ameaças”[10].

Ainda assim, vemos que não há uma efetiva proteção total do refugiado ainda quando a prática de um crime constitui uma oportunidade de saída do País de origem. Em todo o caso, uma coação exercida sobre o mesmo poderá conduzir a uma culpa atenuada deste, em termos de se justificar a atenuação especial da pena aplicada, como enuncia o art. 73.º do Código Penal[11], ou até, em casos extremos, a sua desculpabilização, na hipótese de se verificarem in casu os pressupostos de um “estado de necessidade desculpante”. Esta figura no ordenamento jurídico-penal português prevê que age sem culpa quem pratica um facto ilícito para afastar um perigo atual, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente (cfr. art. 35.º, n.º 1, CP). Mesmo assim, os Tribunais Portugueses têm tido uma visão muito restritiva deste instituto jurídico, afirmando que este só atua em casos limite em que o agente não tem qualquer meio de evitar a prática do facto ilícito[12].

3. A PROTEÇÃO DO REQUERENTE DE ASILO

No que diz respeito ao requerente de asilo, o art. 12.º, n.º 1 da Lei de Asilo estatui, no que ao direito penal interessa e quando se refere, expressamente, a um “processo criminal por entrada irregular em território nacional”, que, no caso do requerente de asilo entrar no país violando a interdição de entrada[13], o respetivo processo-crime (caso tenha sido iniciado) fica em suspenso até uma decisão final sobre o pedido de proteção internacional, isto porque, sendo-lhe concedido o estatuto de beneficiário de proteção internacional, a nova situação jurídico-administrativa determinará o arquivamento do dito processo (cfr. art. 12.º, n.º 2, Lei de Asilo).

Todavia, essa proteção internacional pode ser revogada, como prevê o art. 41.º, n.º 5, al. b) da Lei de Asilo, caso se venha a verificar que o respetivo titular deturpou ou omitiu factos, decisivos para beneficiar do direito de asilo ou de proteção internacional. Acresce ainda que, nos termos do art. 41.º. n.º 5, al. d), da Lei de Asilo, caso o beneficiário de proteção internacional seja, por um lado, condenado, em definitivo, pela prática de crime doloso cuja pena abstrata seja superior a três anos de prisão – como é a moldura penal do crime de tráfico de droga – e representando ele, por outro lado, “um perigo ou fundada ameaça para a segurança interna ou externa ou para a ordem pública”[14], ser-lhe-á revogado o direito de proteção internacional, traduzindo-se este facto na sujeição do mesmo ao regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros de território nacional.[15]

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chega-se assim à conclusão de que a qualidade de refugiado ou requerente de asilo em si mesma será, em princípio, jurídico-penalmente irrelevante, salvo a exceção acima referida, constante do art. 12.º, ns.º 1 e 2, Lei de Asilo. Tudo dependerá das circunstâncias concretas da situação sub judicio, que hão de levar o Juiz a utilizar os poderes que lhe são concedidos para, através da escolha e graduação da pena, alcançar uma justa punição do agente envolvido e a realização do objetivo geral e especial da prevenção face à maior ou menor gravidade do facto e ao grau de culpa do arguido.


FORMA DE CITAR:
D.S. SERENO, O Envolvimento de Refugiados e Requerentes de Asilo em “Correios De Droga”: Proteção Do Ordenamento Jurídico Português, NOVA Refugee Clinic Blog, Fevereiro 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=o-envolvimento-de-refugiados-e-requerentes-de-asilo-em-correios-de-droga-protecao-do-ordenamento-juridico-portugues>


[1] Estudante da Licenciatura em Direito na NOVA School of Law. Investigador na NOVA Refugee Clinic, na Linha de Investigação de Migrações e Poder Punitivo do Estado.

[2] Em 2018, um grande ataque ao comércio de drogas ocorreu, no Bangladesh, onde se verificou uma apreensão de 53 milhões de comprimidos de metanfetamina. Quase 300 traficantes de drogas suspeitos foram mortos, dos quais 40 eram da área de Teknaf, próxima aos campos de Rohingya. Veio-se a saber que os traficantes de droga aliciavam refugiados nesses campos com dinheiro para transportarem droga. As vítimas eram, principalmente, mulheres e crianças.

[3] Ac. STJ de 21-09-2011.

[4] Ac. STJ de 12-03-2015.

[5] Ac. STJ de 6-03-2014, que, por sua vez, faz referência ao Ac. STJ 19-02-97.

[6] DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 50.

[7] Artigo que prevê que se o arguido for estrangeiro, o tribunal pode ordenar a sua expulsão do país, por período não superior a 10 anos.

[8] Lei que define o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional.

[9] Ac. STJ 19-05-2005.

[10] Cfr. art. 33.º n.º 1 da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados e art. 143.º, n.º 1, Lei de Estrangeiros..

[11] O art. 73.º do CP prevê uma atenuação especial da pena caso as circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.

[12] Como foi mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-04-2014.

[13] Cfr. art. 187.º da Lei de Imigração.

[14] Cfr. art. 9.º, n.º 1, Lei de Asilo.

[15] Cfr. art. 42.º, n.º 2, Lei de Asilo: note-se ainda que, cumprida a pena principal e caso não tenha sido aplicada, acessoriamente, a pena de expulsão, o estrangeiro em questão será, por certo, objeto de uma decisão administrativa de afastamento coercivo, por permanência irregular em território nacional (cfr. arts. 145.º e ss., Lei de Imigração).   

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About Diogo Santos Sereno

Estudante do 4.º ano da Licenciatura em Direito na NOVA School of Law. Representante dos Estudantes de 1.º Ciclo no Conselho Pedagógico (desde outubro de 2019) e Presidente da Direção da Associação de Estudantes da NOVA School of Law (de dezembro de 2020 até dezembro de 2021).