A criminalização da ajuda humanitária

Otávio de Figueiredo Raupp/ October 22, 2021/

Otávio de Figueiredo Raupp[1]

Resumo

Pretende-se proceder à crítica da criminalização da ajuda humanitária, no contexto da União Europeia, principalmente a partir da análise da Directiva 2002/90/CE e da Decisão-Quadro 2002/946/JAI, articulando estes instrumentos de direito da União Europeia com a legislação interna dos Estados-Membros e o direito internacional em geral.

Neste contexto, atender-se-á, em particular, à transposição do sobredito normativo da UE para o direito nacional e suas eventuais consequências, em termos de proteção dos defensores dos direitos humanos (maxime, ONG’s) e migrantes em situação de vulnerabilidade.

Palavras-Chave: “facilitators package”; auxílio à imigração clandestina; entrada ilegal; direitos fundamentais do imigrante; direito português do imigrante. 

I. Considerações Iniciais

A Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2002, a par da Decisão-Quadro 2002/946/JAI do Conselho, de 28 de novembro de 2002 , comummente conhecidas por “Facilitators Package”, têm por objetivo o combate à imigracao clandestina (cfr. considerando n.º 2, Directiva 2002/90/CE). Entretanto, a referida Directiva acaba por deixar uma certa margem de discricionariedade aos Estados-Membros no que respeita ao sancionamento do auxílio à entrada ou trânsito ilegais, caso o facilitador atue por razões humanitárias (cfr. art. 1.º, n.º 2, Directiva 2002/90/CE). Acontece, porém, que, não tendo muitos dos Estados-Membros feito uso dessa prerrogativa, assiste-se hoje, nos respectivos territórios, a uma perseguição acesa e irredutível contra os defensores dos direitos humanos e ONGs, deixando, destarte, ainda mais indefesos e vulneráveis os largos milhares de migrantes que procuram a Europa para reconstruir aí as suas vidas.

Quer-nos parecer, portanto, que a simples faculdade consagrada no direito da União Europeia dever-se-ia converter na obrigação de exclusão da punibilidade dos atos em questão, sempre que eles se traduzam na prestação de assistência humanitária ao imigrante ilegal.

Em todo o caso, uma fundamentação mais sólida da tese defendida pressupõe e exige que analisemos, mais detalhadamente, a Directiva 2002/90/CE e a Decisão-Quadro 2002/946/JAI, assim como outras disposições normativas de direito europeu e internacional.

II.       Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2002

Em conformidade com o seu considerando n.º 4, “o objetivo da presente directiva é a definição do auxílio à imigração clandestina e tornar, por conseguinte, mais eficaz a aplicação da Decisão-Quadro 2002/946/JAI na prevenção dessas infrações”. É dizer que está em causa a harmonização do direito interno dos Estados-Membros, em ordem a uma definição partilhada das infrações atinentes à facilitação da entrada, trânsito e permanência irregulares. 

No que toca à nossa análise, daremos particular atenção ao artigo n.º 1, pois contém, não apenas a descrição da conduta proibida, mas, também, a faculdade a que fizemos já referência. Assim, na alínea a) do n.º1, deste artigo, em que se define o auxílio à entrada ou trânsito ilegais, omite-se o animus lucrandi, impondo, portanto, aos Estados-Membros a adopção de sanções adequadas mesmo contra quem presta ajuda sem intenções lucrativas.

Por sua vez, embora o n.º 2, do sobredito artigo, reconheça aos Estados-Membros a faculdade de não sancionar os atos em questão, na hipótese do respectivo agente ser, intimamente, impelido por razões humanitárias, a verdade é que ele acaba por falhar no objetivo perseguido, constituindo “letra morta” para a generalidade das legislações europeias. 

III. Decisão-Quadro 2002/946/JAI do Conselho, de 28 de novembro de 2002.

Na sequência da supra referida Directiva 2002/90/CE, a Decisão-Quadro 2002/946/JAI tem por finalidade dotar de natureza penal as infrações definidas naquela Directiva (cfr. art.1.º, n.º 1, Decisão-Quadro 2002/946/JAI). O combate à imigração clandestina adquire, assim, a particular contundência que caracteriza o ius puniendi, arrastando consigo também aqueles que fazem da defesa universal da dignidade humana o leitmotiv das suas vidas: indivíduos e grupos que colocam em risco a própria segurança para resgatar de uma morte certa outros seres humanos em busca de uma existência menos miserável e conturbada.  

Acresce que o n.º 2, do artigo 1º, prevê ainda outras sanções, que podem somar-se à pena principal de prisão ou multa: perda do meio de transporte que serviu para a prática do acto ilícito, proibição de exercício da profissão desempenhada aquando da prática da infração e/ou expulsão.

IV. Protocolo relativo ao Tráfico Ilícito de Migrantes[2]

Neste diploma da ONU, ratificado pela UE e seus Estados-Membros, com a exceção da Irlanda, a “introdução clandestina de migrantes” é definida como a conduta que respeita à facilitação “da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não é nacional ou residente permanente com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material” (artigo 3.º al. a)).

Por outro lado, a criminalização, quer da “introdução clandestina de migrantes”, quer do auxílio à permanência ilegal, implica sempre a existência de uma intenção de ganho financeiro ou material, direto ou indireto [cfr. artigo 6.º, n.º 1, als. a) e c)]. 

Depreende-se, então, que, se não houver essa dita intenção lucrativa, o auxílio à entrada ilegal não é punido, ao contrário do que se verifica, tanto no direito da União Europeia, como na legislação ordinária dos Estados-Membros, precisamente por força da transposição daquele direito da UE. Divergência normativa esta que se revela de fundamental importância para a proteção daqueles que atuam em benefício de direitos fundamentais dos migrantes (maxime, direito ao respeito pela dignidade que é própria de todos os seres humanos), isto porque os mesmos intervêm sem qualquer intenção de ganho financeiro ou de outra natureza.

V. Declaração sobre os defensores de Direitos Humanos[3]

Apesar de não servir de instrumento vinculativo, a Declaração sobre os defensores de Direitos Humanos, adotada consensualmente na Assembleia Geral da ONU, representa um compromisso assumido pelos países no sentido da promoção e proteção por todos eles dos direitos humanos e liberdades fundamentais universalmente reconhecidos. No respectivo texto, são inscritos certos princípios e direitos advindos de outros diplomas – estes, sim, com efeito vinculativo – os quais devem servir de parâmetro jurídico e axiológico-normativo a uma efetiva, plena e livre realização da pessoa humana, seja individualmente, seja em associação com outras pessoas. Neste sentido, a Declaração sublinha a responsabilidade primordial de cada Estado, particularmente no que respeita aos defensores dos direitos humanos[4], sem ignorar, contudo, a obrigação destes últimos de desenvolver as suas atividades de maneira pacífica[5]. É, todavia, um simples “gentleman ‘s agreement”, faltando-lhe, portanto, o caráter vinculativo que converteria as suas disposições em obrigações internacionais. 

VI. Direito português

Numa breve referência ao nosso direito interno, a Directiva 2002/90/CE complementada pela Decisão-Quadro 2002/946/JAI são transpostas para nossa ordem jurídica interna através do Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de fevereiro, que promove a segunda alteração do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de agosto, relativo ao regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional[6]. É, precisamente, aquele Decreto-Lei que introduz, pela primeira vez, o artigo 134.º-A (atualmente, artigo 183.º), que criminaliza o auxílio à imigração ilegal.

Assim, nos termos do n.º 1, deste artigo[7], o favorecimento ou facilitação da entrada ou trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional são punidos, mesmo que o respectivo agente tenha atuado sem intenção lucrativa. Já o n.º 2, do mesmo artigo[8], só sanciona, penalmente, o auxílio à permanência ilegal havendo animus lucrandi, servindo, por outro lado, esta intenção lucrativa como factor agravante da pena aplicável ao auxílio à entrada ou trânsito ilegais.

VII. A triste realidade dos números

Os casos reportados, principalmente no período de 2015 a 2019[9], mostram um aumento exponencial, em toda a União Europeia, do número de investigações e acusações pelos crimes descritos no artigo 1º, n.º 1, Directiva 2002/90/CE.

Por outro lado, verifica-se, por referência às mesmas fontes, que os indivíduos acusados da prática de auxílio à entrada ou trânsito ilegais são mais do quádruplo dos pronunciados apenas pelo crime de auxilio à permanência ilegal, sendo esta realidade demonstrativa do real efeito expansivo da ausência de intenção lucrativa na perseguição do primeiro tipo de criminalidade: no sobredito período, 83 pessoas foram investigadas por auxílio à entrada ou trânsito ilegais contra 18, indiciados somente por facilitação de permanência ilegal.

Acresce que o alvo deste combate à imigração clandestina é constituído em grande parte por voluntários de ONGs que operam principalmente em “search and rescue operations”. 

VIII. Conclusões

Desde logo, deve ressaltar-se a importância crucial das pessoas que, individualmente ou associadas a outras (sobretudo, ONGs), prestam auxílio aos migrantes: efetivamente, sem essa atividade, muitos deles não chegariam com vida a um local seguro. Tanto bastará para considerar incompreensível a criminalização daquele auxílio, não apenas pela flagrante injustiça que ela traduz, mas, principalmente, porque é causa de uma vulnerabilidade acrescida de quem procura somente subtrair-se a uma situação de miséria e/ou conflito. Por esta razão, fará todo o sentido falar-se em “criminalização da solidariedade”[10]

Por outro lado, a sobredita criminalização, assim como toda a atividade persecutória a que dá lugar, são censuráveis à luz do direito internacional humanitário, acabando por negar, direta ou indiretamente, a certos grupos de indivíduos direitos que devem ser reconhecidos a todos os seres humanos, independentemente “de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política, ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de propriedade ou de nascimento, ou de outra situação” (cfr. art. 2.º, n.º 1, Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos).  

Ademais, a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, no seu artigo 31.º, proíbe a aplicação de sanções criminais pela entrada ilegal no território de um Estado, prescrição legal está dificilmente compaginável com a punição de quem presta, desinteressadamente, auxílio àquela entrada[11].

Em suma, advogamos a revisão da nossa legislação europeia, num duplo sentido:

  • à semelhança do que prevê já o art. 6.º, n.º 1, Protocolo relativo ao Tráfico Ilícito de Migrantes, o animus lucrandi deve ser considerado pressuposto subjetivo ineliminável da criminalização do auxílio à entrada ou trânsito ilegais;
  • converter em obrigação para os Estados-Membros a medida facultativa prevista no art. 1.º, n.º 2, Directiva 2002/90/CE, consistente em isentar de pena o agente que presta auxílio à entrada ou trânsito ilegais por razões humanitárias.

[1] Estudante de Direito – Licenciatura na NOVA School of Law. Investigador na linha de Migração & Poder Punitivo do Estado, da NOVA Refugee Clinic.

[2] Sendo um documento legislativo adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, o Protocolo relativo ao Tráfico Ilícito de Migrantes entra em vigor, na ordem jurídica portuguesa, a 9 de junho de 2004, após ratificação através do Decreto do Presidente da República n.º 19/2004, de 2 de abril, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 79.

[3]  A Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos) está disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/o-defensoresdh.html

[4] Estatui o art. 18.º n.º 2, Declaração sobre os defensores de Direitos do Homem, que “os indivíduos, grupos, instituições e organizações não governamentais têm um papel importante a desempenhar e a responsabilidade de defender a democracia, proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais e contribuir para a promoção e progresso das sociedades, instituições e processos democráticos”.

[5]  Em conformidade com o art. 12.º, n.º 1, Declaração sobre os defensores de Direitos do Homem, “todos têm o direito, individualmente ou em associação com outros, de participar em atividades pacíficas contra violações de direitos humanos e liberdades fundamentais” (o “itálico” é nosso).

[6]  Atualmente, o regime jurídico referido em texto consta da Lei n.º 102/2017, de 28 de agosto, comumente conhecida por Lei dos Estrangeiros.

[7]  Diz o art. 183, n.º 1, Lei dos Estrangeiros, que aquele que ”favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até três anos.”

[8] “Segundo o artigo 183, n.º 2, Lei dos Estrangeiros, “quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”

[9] Lina Vosyliüté e Carmine Conte, “Crackdown on NGOs and volunteers helping refugees and other migrants”, Resoma Final Synthetic Report, Junho, 2019, http://www.resoma.eu/sites/resoma/resoma/files/policy_brief/pdf/Final%20Synthetic%20Report%20-%20Crackdown%20on%20NGOs%20and%20volunteers%20helping%20refugees%20and%20other%20migrants_1.pdf

[10]  Veja-se, por exemplo, o caso Iuventa – processo contra a tripulação e embarcação da ONG Jugen Rettet. O navio que já salvou mais de 14 mil vidas no mar Mediterrâneo encontra-se apreendido pelas autoridades italianas, e parte da tripulação é investigada pelo crime de facilitação de migração iilegal.

[11] Amnesty International, “Punishing Compassion Solidarity on Trial in Fortress Europe”, 2020, https://www.amnistia.pt/wp-content/uploads/2020/03/Punishing-Compassion-Report.pdf


COMO CITAR ESTE BLOG POST:

Raupp, Otávio de Figueiredo. “A criminalização da ajuda humanitária”. NOVA Refugee Clinic Blog, Outubro 2021, disponível em: <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=a-criminalizacao-da-ajuda-humanitaria>

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  • Otávio de Figueiredo Raupp

    Frequenta o 3.º ano da licenciatura na NOVA School of Law. Tem grande interesse nas áreas de Direito Internacional Público e Direito Europeu. Atualmente Team Member of the Academic Activities Department for the LisboMUN Association.

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About Otávio de Figueiredo Raupp

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