Breves comentários à revisão da Recomendação relativa aos direitos humanos das mulheres e crianças na qualidade de migrantes, refugiadas e requerentes de asilo

Francisca Marques de França/ October 31, 2021/

Francisca Marques de França[1]

Due consideration should be given to the needs and circumstances migrant, refugee and asylum-seeking women and girls.

Sumário:

O presente texto refere-se à revisão da Recomendação adotada pelo Drafting Committee in Migrant Women, relativa aos direitos humanos das mulheres e crianças na qualidade de migrantes, refugiadas e requerentes de asilo (doravante ‘Recomendação’). A presente Recomendação reveste particular importância num contexto em que são constantes a existência e vivência de perigos, pelas mulheres e crianças, em particular, durante a sua jornada. Neste sentido, impera ter uma visão sensível ao género e atenta às particulares vulnerabilidades que este grupo enfrenta.

Palavras-chave: Abordagem intersecional; Abordagem sensível às questões de género; Interpretação sensível às questões de género


Razão de ser da presente Recomendação

«Upon arrival on a Greek island, she slept in the open without shelter, privacy, or access to assistance. “I fear that I will go crazy,” she admitted.»[2]. Estas foram as palavras proferidas por Oumo – requerente de asilo – que evidenciam a noção de que esta particular categoria pessoas, isto é, as mulheres, crianças e jovens adultas deslocadas ou refugiadas, é marcada pela sua vulnerabilidade. Esta caracteriza-se por, além das adversidades enfrentadas subjacentes ao fenómeno de migração, estas pessoas estarem expostas a um conjunto adicional de riscos e desafios.

Todavia, apesar dos riscos enfrentados durante a viagem, a sua proteção nem sempre é uma prioridade tida em conta pelos Estados que as recebem. Além do mais, se tivermos a consciência de que as condições e procedimentos são muito variáveis, em função do país considerado, esta circunstância agrava-se. É neste contexto que a necessidade de existência de um abordagem sensível às questões de género[3], tem vindo a ser cada vez mais considerada, no espaço europeu.

Neste âmbito, foi adotada a «Draft Recommendation on protecting the human rights of migrant, refugee and asylum-seeking women and girls», na última reunião do Comité de Redação sobre Mulheres Migrantes do Conselho da Europa (CEG-MIG), a qual decorreu entre os dias 30 de setembro e 1 de outubro e que procedeu à revisão de um documento-compromisso, preparado entre junho e julho de 2021.

Por sua vez, esta Recomendação foi adotada no âmbito da «Estratégia para Igualdade de Género do Conselho da Europa 2018-2023»[4], da qual destacamos o «Objetivo Estratégico n.º 5: Proteção dos direitos das mulheres e crianças migrantes, requerentes de asilo e refugiadas». Em segundo lugar, pela leitura do Preâmbulo, verificamos que deve a mesma ter também por base a Recomendação (79)10 relativa às mulheres migrantes[5].

No âmbito da Estratégia para a Igualdade de Género, foi reconhecido um crescente número de mulheres migrantes, refugiadas e requerentes de asilo, em particular situação de vulnerabilidade e precariedade. Estas, além de estarem sujeitas às adversidades inerentes ao fenómeno migratório dos últimos anos, enfrentam um conjunto adicional de perigos, marcado pela violência baseada no género: antes, durante e após a sua viagem[6]. A violência baseada no género é uma conceção da violência especificamente orientada para uma pessoa, em função do seu género, assumindo, neste contexto, formas específicas em função do mesmo – no caso do género feminino, as formas que este tipo de violência pode assumir foram já reconhecidas pelo Conselho da Europa, de entre as quais encontramos a «(…) violação e outras formas de abuso e exploração sexual, assédio ou violência doméstica»[7]. Em consequência disto, devem ser adotadas medidas que «(…) providenciem uma proteção, tratamento e cuidados adequados e com perspetiva de género.»[8].

Por outro lado, no âmbito da Recomendação 79(10), devem os Estados-Membros da União Europeia, entre outras medidas, assegurar que as respetivas legislações nacionais, no que concerne às mulheres migrantes, estejam especialmente adaptadas, por um lado, e, por outro lado, devem providenciar uma efetiva igualdade de oportunidade e de tratamento entre as mulheres migrantes e nacionais. Neste sentido, no Preâmbulo da Recomendação, é reforçado que a garantia dos direitos humanos – em espacial deste grupo da população – passa pela garantia da igualdade de género[9].

Por fim, e tendo em conta que estas mulheres são confrontadas com várias formas interseccionais de discriminação e de perseguição (cfr. Ponto 17), deve ser tida, também, em conta e a par de uma abordagem e tratamentos sensíveis às questões de género[10], uma abordagem interseccional, que considere as características específicas deste grupo de população refugiada, assegurando, deste modo, um melhor tratamento das situações individuais e garantia dos direitos humanos.

Das alterações à Recomendação

Quanto à revisão da Recomendação, especificamente considerada, foi feito apenas um único aditamento ao ponto 6, que consagra e reconhece em particular os direitos das crianças, e que se insere na secção intitulada por “Não discriminação, problemas interseccionais e eliminação de estereótipos”. Esta secção consagra como objetivo transversal a todos os Estados-Membros a eliminação da discriminação em função do género.

Na versão original da Recomendação podia ler-se: «6. Member States should adopt a child rights-based approach to migrant, refugee and asylum-seeking girls, which takes account of the age and specific vulnerable situations and needs of girls». Com a revisão, foram adicionados cinco parágrafos, os quais se reproduzem em seguida (no original):

«6bis. Child protection measures should be implemented without discrimination based on migration status.

6ter. Member States should mainstream gender considerations across policies, guidance, and capacity building on unaccompanied and separated children in line with the scope and mandate of each national authority to:

6ter.1 strengthen identification procedures, including age assessment when appropriate, in accordance with international standards;

6ter.2 ensure full respect for the best interest of the child by considering the specific situation of every girl, whether she is visibly unaccompanied, travelling within another family, or married;

6ter.3 ensure that reception systems are appropriate to the sex and age of unaccompanied and separated girls and include suitable and safe alternative care arrangements».

Verificamos que foi tida especialmente em conta a proteção concedida às crianças, nomeadamente, às raparigas e jovens adolescentes, as quais – além da especial consideração de que devem ser alvo (pela sua menoridade), devem beneficiar de uma proteção acrescida em função do género, tal como é referido no Ponto 6., «the age and specific vulnerable situations».

Da nossa parte, destacamos a medida contida no Ponto 6(ter.3)., relacionada com as condições materiais de receção que determina que os centros de receção devem estar adaptados em função do género e da idade e que devem incluir condições e cuidados alternativos, adequados e seguros.

Neste plano, o Departamento de Política já fez várias recomendações orientadas para o facto de estes centros de receção e acolhimento terem que ter em conta as especificidades de género, que vão desde as necessidades do quotidiano[11], aliadas à necessidade de reforço da proteção. Este é um aspeto fundamental e essencial para assegurar a proteção internacional, na medida em que a mesma «vai além da adesão aos princípios legais» e «deve ser entendida no seu sentido mais amplo, nomeadamente, por intermédio da garantia de acesso às condições mais básicas v.g., alimentação, roupas, abrigo»; sem as quais este grupo se torna ainda mais vulnerável.

Conclusões

Estas alterações consistiram no complemento adequado ao texto. Neste contexto, devemos relembrar o que foi definido no «Objetivo Estratégico n.º 5», no âmbito do qual estão determinados dois objetivos estruturais, quanto à atuação dos Estados-Membros – centros de receção deste grupo de migrantes, refugiados e requerentes de asilo – que devem considerar, em especial, as necessidades das crianças e jovens mulheres (no original):

  1. «(…) support member States to implement Council of Europe and other relevant instruments, including the Organisation’s Action Plan on Protecting Refugee and Migrant Children in Europe, taking into account CEDAW’s General Recommendation No. 32[12] on the gender-related dimensions of refugee status, asylum, nationality and statelessness of women, and the SDGs»;

A recomendação em causa apresenta as linhas gerais que devem orientar os Estados na sua política legislativa e consequente atuação, no cumprimento das respetivas obrigações internacionais, determinadas pela presente recomendação, a qual visa garantir: 1) a não discriminação e 2) a igualdade de género no que concerne à conceção do estatuto de refugiado, de asilo ou nacionalidade às mulheres e crianças, conforme se pode observar no primeiro parágrafo. Para além do mais, é marcadamente reconhecido que a Convenção[13] concede (e assim o deve fazer) uma proteção acrescida no que concerne à proteção internacional conferida a este grupo[14].

Por isso mesmo, o parágrafo ‘6bis’ determina que as medidas de proteção das crianças devem ser implementadas de forma indiscriminada, e que devem ser baseadas apenas na sua condição: a condição de migrante.

  • «(…) support the implementation of existing standards aimed at preventing migrant, refugee and asylum-seeking women and children from falling victim to gender-based violence, sexual abuse, trafficking, exploitation and negative social control, including by addressing these risks through adequate identification, reporting and referral mechanisms at the national level.».

No que concerne a este segundo objetivo, o mesmo está concretizado no parágrafo ‘6ter.’, que reforça, em primeiro lugar, a necessidade de os Estados-Membros adotarem medidas de acompanhamento de menores, reforçando os procedimentos de identificação[15], tendo em conta as circunstâncias específicas da criança[16], bem como providenciando uma melhoria, sensível às suas necessidades específicas enquanto crianças e jovens adultas, e, por isso, adaptando os centros de receção em função dessas circunstâncias[17].


[1] Licenciada em Direito na NOVA School of Law. Researcher na da Linha de Investigação “Migração & Género e Sexualidade”.

[2] UNHCR-UNFPA-WRC, ‘Report warns refugee women on the move in Europe are at risk of sexual and gender-based violence’(UNHCR, 20 January 2016), consultado em 10 de outubro de 2021, disponível em https://www.unhcr.org/news/press/2016/1/569f99ae60/report-warns-refugee-women-move-europe-risk-sexual-gender-based-violence.html.

[3] Nils Muižnieks, ‘Human rights of refugee and migrant women and girls need to be better protected’(Council of Europe, 7 March 2016), consultado em 10 de outubro de 2021, disponível em https://www.coe.int/en/web/commissioner/-/human-rights-of-refugee-and-migrant-women-and-girls-need-to-be-better-protected.

[4] Tal como foi reconhecido no Ponto 4. do Preâmbulo da Recomendação.

[5] O que é expressamente referido no Ponto 19.

[6] O ACNUR, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a Comissão para Mulheres Refugiadas recentemente avaliaram os riscos para mulheres e jovens adultas, durante a sua jornada para a Grécia e, depois, na Europa; onde concluíram que “women and girls, especially those travelling alone, face particularly high risks of certain forms of violence, including sexual violence by smugglers, criminal groups and individuals in countries along the route”.

[7] Nils Muižnieks, ‘Human rights of refugee and migrant women and girls need to be better protected’(Council of Europe, 7 March 2016).

[8] Objective 5 “Protect the rights of migrant, refugee and asylum-seeking women and girls”.

[9] Gender equality entails equal rights for women and men, girls, and boys as well as the same visibility, empowerment, responsibility, and participation in all spheres of public and private life. It also implies equal access to and distribution of resources between women and men, in Council of Europe Gender Equality Strategy 2018-2023.

[10] A gender-sensitive interpretation implies recognising and understanding how gender can have an impact on the reasons behind the type of persecution or harm suffered. A woman may be persecuted: as a woman (e.g. raped) but for reasons unrelated to her gender (e.g. her membership of a political party); not persecuted in a manner specific to her female identity (e.g. beaten) but because of her gender (e.g. for wearing a veil); as and because she is a woman (e.g. female genital mutilation)” in F Hooper, ‘GENDER-BASED ASYLUM CLAIMS AND NON-REFOULEMENT: ARTICLES 60 AND 61 OF THE ISTANBUL CONVENTION A collection of papers on the Council of Europe Convention on preventing and combating violence against women and domestic violence’ (2019).

[11] No sentido de garantir que as condições materiais de receção são sensíveis ao género teriam que ser assegurados os seguintes aspetos: “separate housing: men and women must be housed separately, with the exception of families who want to stay together. (…) In order to further improve the safety and privacy of women, private bathing and sanitation facilities should also be provided in reception centres, in particular in cases were the centres are overcrowded. (…)”; “Sufficient health-care must be present at the reception centres, in particular in the case of pregnant women. (…) Women must also have access to psychological aid in order to recover from traumatic experiences.”. in BONEWIT, A., 2021.‘Reception of female refugees and asylum seekers in the EU Case study Germany.’[online]Europarl.europa.eu. , consultado em 11 de outubro de 2021, disponível em https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2016/571364/IPOL_STU(2016)571364_EN.pdf.

[12] General recommendation No. 32 on the gender-related dimensions of refugee status, asylum, nationality and statelessness of women (UN Committee on the Elimination of Discrimination Against Women (CEDAW)).

[13] Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951.

[14] Especialmente se considerarmos que as disposições relativas à igualdade de género não tendem a estar presentes nos acordos internacionais de maior relevância.

[15] Ponto 6(ter.1).

[16] Ponto 6(ter.2).

[17] Ponto 6(ter.1).


COMO CITAR ESTE BLOG POST:

França, Francisca Marques de. “Comentários à revisão da Recomendação relativa aos direitos humanos das mulheres e crianças na qualidade de migrantes, refugiadas e requerentes de asilo”. NOVA Refugee Clinic Blog, Outubro 2021, disponível em: <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=breves-comentarios-a-revisao-da-recomendacao-relativa-aos-direitos-humanos-das-mulheres-e-criancas-na-qualidade-de-migrantes-refugiadas-e-requerentes-de-asilo>

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