Tráfico Humano: será Portugal apenas um país de trânsito?

Jean Cajaty/ November 29, 2021/

Jean Cajaty[1]

Resumo

O tráfico de seres humanos apresenta-se sob diversas vertentes, recebendo, por muitos autores, a classificação de transnacional, complexo e multifacetado. Consubstancia-se numa grave violação dos direitos humanos e, por inerência, numa grave ameaça para o Estado Democrático. Deste modo, o combate a este tipo de criminalidade tem sido o foco da comunidade internacional.

Portugal localiza-se no extremo sudoeste da Europa, servindo, em muitos casos, como “porta de entrada” para traficantes que visam outros países mais a leste, designadamente Espanha e Itália. Consequentemente, nos últimos anos, as autoridades portuguesas têm aumentado consideravelmente os esforços para o combate a este tipo de crime através da criação de grupos especiais, elaboração de relatórios anuais e conscientização da população[2]. Ainda assim, poucos são os dados encontrados relativamente às vítimas de tráfico humano em trânsito no país. É dizer que permanece, em boa parte, por esclarecer a questão que serve de título ao presente estudo: “será Portugal apenas um país de trânsito?” 

Em todo o caso, ir-se-á, primeiramente de forma sintética, apresentar a definição deste tipo de crime para a posteriori, de modo mais exaustivo, traçar o mapa do fluxo de tráfico humano ao redor do mundo e em Portugal. Por último, procurar-se-á dar a resposta possível à sobredita questão.

Palavras-chave: Tráfico de seres humanos; rotas de tráfico de seres humanos; direitos humanos.


Definição do TSH

No âmbito internacional, a definição deste tipo de crime pode ser encontrada, entre outras fontes normativas, no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças” (abreviadamente, Protocolo contra o Tráfico de Pessoas). Nos termos do artigo 3º, alínea a), deste diploma, entende-se por tráfico de pessoas “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”.

Passando para o domínio nacional, importa destacar o artigo 160º, do Código Penal, que não se distancia da definição internacional acima referida[3]. Importa, todavia, evidenciar, não apenas que os fins de exploração, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 60/2013, de 23 de agosto (que transpõe a Diretiva 2011/36/CE) alargam-se à mendicidade e quaisquer outras atividades criminosas (enumeração exemplificativa), como a criminalização do tráfico de menores, seja qual for o meio de ação usado (crime de execução livre)[4].

Rotas de tráfico humano: visão geral e a situação de Portugal

Apesar da constante mudança relativamente às rotas de tráfico humano, um ponto mostra-se uniforme: a crassa desigualdade socioeconômica entre os países de destino, por um lado, e de origem, por outro. Desta forma, pode dizer-se que TSH envolve, via de regra, a deslocação de pessoas de países em vias de desenvolvimento para países mais desenvolvidos[5]. Não obstante, as rotas de tráfico nem sempre serão tão uniformes: há também de ter em conta os países conhecidos como bidirecionais: isto é, aqueles que, quer pela sua localização geográfica, quer por força de uma crise momentânea, são simultaneamente destino – consequência da procura pelas classes sociais mais altas – e origem – resultado do êxodo das classes sociais mais baixas – de vítimas de tráfico humano.

O mapa do fluxo de tráfico humano ao redor do mundo varia, entre outros fatores, consoante a finalidade do crime, idade das vítimas e região analisada. Todavia, no cômputo geral e segundo o último relatório elaborado pelas Nações Unidas[6], a América do Norte, Europa, Oriente Médio e alguns países do Leste Asiático apresentam-se como principais destinos das vítimas de TSH. Relativamente à origem, ganham destaque a África, o Oriente Médio e as Américas[7].

O perfil das vítimas oscilará, também, conforme a região analisada. Globalmente, as mulheres ainda são especialmente afetadas por este tipo de crime: a cada dez pessoas detetadas, cinco são mulheres adultas e apenas duas homens adultos. A principal forma de exploração destas mulheres é a sexual (77% dos casos), seguida da laboral (14%). Entre os homens, o trabalho forçado mostra-se como a principal finalidade de exploração (67%). Porém, deve ser dada uma especial atenção ao tráfico de crianças[8]. Enquanto, em 2004, estas pessoas representam apenas 13% do total das vítimas, atualmente elas constituem 34% do número global destas. Para os menores do sexo masculino, a principal forma de exploração é a laboral (66%); já para as raparigas, a forma de exploração mais utilizada é a sexual (72%)[9].

A nível nacional, apesar das estatísticas não revelarem números tão preocupantes [EdO1] quanto os de outros países da Europa[10], Portugal, ainda assim, deve ser considerado como país que é, simultaneamente, de trânsito, origem e destino[11]. De acordo com dados cedidos pelo governo português respeitantes ao ano de 2020[12], e inscritos no IV Plano de Ação para a Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos, 215 pessoas foram sinalizadas como (presumíveis) vítimas de tráfico humano, sendo 186 adultos e 29 menores, com destaque para o tráfico para fins de exploração laboral (155 pessoas). A respeito deste último, embora exista uma considerável queda em 2020, os dados apontam, até 2019, para um aumento progressivo do número de vítimas, sobressaindo o setor agrícola seguido pelos da restauração e futebol[13]/[14].

Relativamente ao sexo, assim como no ano anterior (2019)[15], a maioria das (presumíveis) vítimas são homens. Quanto à nacionalidade, a maior parte das vítimas é proveniente da Índia, tal como sucedia já em 2019, mas diversamente do verificado de 2012 a 2017, época em que predominavam os nacionais de países do leste europeu, nomeadamente da Moldávia e Roménia.

Também em 2020, a grande maioria das vítimas de tráfico humano tem Portugal como o seu destino final. Todavia, tal resultado não representa nenhuma novidade para a realidade portuguesa[16]: nos últimos 6 anos, pelo menos[17], tem-se observado que o número de vítimas de tráfico exploradas em Portugal é substancialmente superior aos de trânsito e origem.

De um modo geral, existem pouquíssimas informações relativas às vítimas de tráfico em trânsito no nosso país. Nos últimos relatórios oficiais, as autoridades centraram-se apenas na análise das vítimas localizadas em Portugal[18].  Ainda assim, constata-se, em pesquisas anteriores, que Portugal, pela sua localização geográfica, encontra-se no caminho de algumas rotas de tráfico humano, avultando as seguintes: América do Sul–Portugal–Espanha, América do Sul-Portugal-Itália e África-Portugal-Itália[19]. Atualmente, dados recolhidos pelas autoridades americanas[20] revelam que redes de tráfico subsaarianas usam o território português como “porta de entrada” para o espaço Schengen, tendo em vista a exploração sexual e laboral de crianças.

Neste contexto, as sinalizações apresentam especial relevância, visto que são o primeiro “degrau” para a identificação e acolhimento das vítimas. Pese embora poderem ser feitas por uma multiplicidade de agentes[21], incluindo as próprias vítimas, identificam-se ainda diversas barreiras para a identificação destas, tais como: o desconhecimento da língua nativa; falta de informação sobre a legislação do país; medo de represália pelos seus agressores, etc. Ademais, em Portugal, o treinamento dos órgãos de polícia – em especial, dos policiais da imigração –  e de outros sectores-chave[22] mostra-se insuficiente para a correta identificação das vítimas de tráfico humano[23]. Por conseguinte, o número de sinalizações divulgado em relatórios oficiais não exprime corretamente a realidade do país.

Conclusão

Tudo ponderado, evidencia-se que as rotas de tráfico de seres humanos envolvem o deslocamento de vítimas oriundas de países mais pobres para países mais ricos. Por outras palavras, pode dizer-se que estas refletem as fragilidades socioeconômicas enfrentadas pelos Estados de origem.

O presente artigo revela, igualmente, que Portugal, não só se encontra na rota de trânsito do TSH ao redor da Europa, como também é um país de destino para a grande maioria das suas vítimas – pelo menos, quanto às sinalizadas. Acresce que os dados levantados, nos últimos relatórios, apontam para um crescimento exponencial na prática deste crime, sobretudo quando a finalidade é a exploração laboral, com destaque para o setor agrícola.

Por fim, apesar do louvável esforço das autoridades portuguesas na elaboração de dados estatísticos acerca do TSH, identifica-se uma escassez destes no que toca às vítimas em trânsito no país.


[1] Aluno do 4º ano do curso de Direito da Nova School of Law e investigador da linha de investigação “Migração & Poder Punitivo do Estado” da NOVA Refugee Clinic.

[2] Cfr. IV Plano de Ação para a Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos, OTSH.

[3] Cfr. Melo, Manual Fernando da Silva. Tráfico de Seres Humanos – Dificuldades e Desafios da Prevenção e Repressão, Universidade do Minho, 2016.

[4] Cfr. Carvalho, Filipa da Mota Alvim. “Só Muda a Moeda”: Representações sobre Tráfico de Seres Humanos e Trabalho Sexual em Portugal, Instituto Universitário de Lisboa, 2013.

[5] Filipe, Anabela Ferreira. TRÁFICO DE SERES HUMANOS ANÁLISE DE UMA ESCRAVATURA CONTEMPORÂNEA, 2007.

[6] GLOBAL REPORT ON TRAFFICKING IN PERSONS, 2020. United Nations.

[7] Ibidem.

[8] Por regra, entende-se por criança qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] V. www.oikos.pt/traficosereshumanos/trafico-de-seres-humanos/o-trafico-de-seres-humanos-em-portugal (visto por último em novembro de 2021).

[12] Cfr. Relatório Sobre o Tráfico de Pessoas, 2020, OTSH.

[13] Para mais, cfr. Relatório Sobre o Tráfico de Pessoas, 2020, OTSH.

[14] Também não se pode esquecer o escandaloso caso dos trabalhadores estrangeiros de Odemira que viviam em condições análogas à escravidão. Para mais, v. www.publico.pt/2021/05/03/sociedade/noticia/sobrelotacao-insalubridade-identificadas-22-situacoes-alojamento-odemira-deficiencias-1960985 (visto por último em novembro de 2021).

[15] Cfr. Relatório Sobre o Tráfico de Seres Humanos, 2019, OTSH.

[16] Cfr. www.ec.europa.eu/anti-trafficking/eu-countries/portugal_en (visto por último em novembro de 2021).

[17] Cfr. Relatório Sobre o Tráfico de Seres Humanos, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, OTSH.

[18] Cfr. A Proteção dos Direitos Humanos e as Vítimas de Tráfico de Pessoas, Instituto de Estudo Estratégicos e Internacionais, 2012.

[19] Ibidem.

[20] Cfr. Trafficking in Persons Report: Portugal, U.S Departament of State, 2021.

[21] Cfr. Santos, Raquel Henriques. O crime de tráfico de pessoas para exploração sexual: o Ser Humano como meio de obtenção de lucros, Nova School of Law, 2018.

[22] Inspetores do trabalho, funcionários do governo, etc.

[23] Cfr. Trafficking in Persons Report: Portugal, U.S Departament of State, 2021.


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Cajaty, Jean. “Tráfico Humano: será Portugal apenas um país de trânsito?”. NOVA Refugee Clinic Blog, Novembro 2021, disponível em: <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?post_type=blog_post&p=3090>

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About Jean Cajaty

Estudante do 3.° ano de Direito na NOVA School of Law. É também Presidente do Núcleo de Estudantes Internacionais e voluntário do programa Pro Bonno.