Breves notas sobre o Tráfico de Seres Humanos e as Mulheres

Rafaela Rocha/ June 21, 2021/

Rafaela Rocha[1]

“Eu pedi o fim da violência em todos os lugares. Mas a violência não se limita ao campo de batalha. Para muitas mulheres e meninas, a maior ameaça paira sobre elas onde elas devem se sentir mais seguras: em casa.”

– António Guterres, Secretário-Geral da ONU in UN WOMEN 2020[2]

Resumo

O crime de tráfico humano é complexo e abrange uma variedade de adversidades, fruto do crime organizado, da exploração sexual e laboral, as quais se podem acentuar devido às diferenças de desenvolvimento socioeconómico entre Norte e Sul Global.

As causas do tráfico humano de mulheres são desde há muito tempo reconhecidas pela comunidade internacional, cuja prática acaba por se consolidar por conta de múltiplas vulnerabilidades decorrentes da situação de pobreza, das desigualdades entre homens e mulheres e a violência secular perpetrada contra as mulheres, sendo estas situações que acabam por colocar a mulher numa posição de maior vulnerabilidade, fruto de dinâmicas de poder assimétricas.

As políticas desenvolvidas pelas entidades públicas para prevenir e combater o tráfico transnacional (visto não ser uma prática que ocorre apenas entre Estados distintos) destina-se às populações que apresentem maior vulnerabilidade, como é o caso das situações que são vivenciadas pelas mulheres, mas ainda apresentam escassa eficácia.  Estas breves notas refletem sobre as questões emergentes e fundamentais do tráfico de seres humanos tendo em consideração as questões de género.

Palavras-chave: direitos humanos, tráfico de mulheres, questões de género, sinalização de vítimas


Introdução às questões de género no tráfico de seres humanos

O enquadramento legal do Tráfico de seres humanos no ordenamento jurídico português está previsto no Artigo 160.º do Código Penal[3], que inclui como elementos do tipo legal do crime: o ato de recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa com a intenção de submetê-la à exploração, nomeadamente a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão entre outros. A actual redacção do artigo 160.º do Código Penal reflecte o conceito de tráfico de pessoas previsto no Artigo 3º, alínea a), do Protocolo de Palermo[4], segundo o qual define como tráfico de pessoas:

“(…) a prática de recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrente à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos (…)”.

O crime de tráfico de seres humanos reflecte as múltiplas vulnerabilidades que as mulheres enfrentam, espelhando, ainda, a disparidade do impacto do tráfico em função do género. Segundo o anexo ao IV Plano de Ação para a Prevenção e o Combate ao Tráfico de Seres Humanos 2018-2021 da Resolução do Conselho de Ministros (doravante IV PAPCTS 2018-2021)[5], o crime de tráfico de pessoas é uma grave violação dos direitos humanos, com múltiplas causas, de que são exemplo a desigualdade entre homens e mulheres e a violência perpetrada contra as mulheres, tanto em situações de conflito como após o mesmo, afetando a oportunidade de emprego, o acesso à educação, entre outros. Note-se, porém, que existe uma propensão em tratar a população como uma categoria indiferenciada, levando a uma despersonalização (e desumanização) por via da omissão de subjetividades inerentes às especificidades e heterogeneidades destes grupos, em função do gênero, classe social e etnia, e que acaba por obliterar as violências inerentes a estes grupos específicos.

De forma a melhorar a interpretação e implementação da lei, o Manual para Profissionais do Sistema de Justiça Penal[6] foi desenhado de forma a fomentar um funcionamento do sistema de justiça penal mais eficaz. Assim o Manual incentiva que seja realizada a recolha de informação, análise e tratamento dos dados, de forma que seja obtido uma perspectiva da dimensão do crime, tendo em conta, por exemplo, as questões de género. De igual forma, em 2015 em Bruxelas, no âmbito do Encontro da Rede de Relatores Nacionais e/ou Mecanismos Equivalentes para o Tráfico de Seres Humanos, promovido pelo Conselho da União Europeia, foi feito um esforço a nível nacional e internacional no sentido de promover uma reflexão acerca da prática deste crime e suas consequências mediante as realidades em questão.

Acresce ainda que, e tal como mencionado por Kamala Kempadoo, poderá haver impactos muito distintos em relação à forma como os países do Sul e do Norte do globo implementam políticas e estratégias contra o tráfico de pessoas[7]. Se há aspetos de convergência no que toca às problemáticas subjacentes ao tráfico, também persiste uma discrepância entre a lei e a sua interpretação e aplicação.

Sinalizando Vítimas de Tráfico

A sinalização de vítimas de tráfico é essencial, de forma a ser feita eficazmente, requer um olhar atento que identifique a situação social, econômica e, em alguns casos, política que evidenciam a vulnerabilidade das mesmas ao tráfico.

O tráfico humano é uma realidade que nos últimos anos, segundo informação da Interpol, aumentou exponencial, quer no número de vítimas, quer nos lucros dos traficantes, cuja soma fica somente a competir com o tráfico de drogas e de armas[8]. Um dos muitos testemunhos relatados por Céu Neves, menciona a história de “Andra”, de nacionalidade romena:

“Venderam-me a uns homens de outra cidade sem que eu soubesse. Perguntaram-me se eu queria trabalhar por um tempo em Espanha, num hotel, como empregada de limpeza. Eu fiquei contente com a ideia, fascinada”[9].

Tal como Andra, na maioria das vezes, as vítimas são atraídas por promessas ilusórias de trabalho em outros países, seja para trabalhos como modelos (para as mulheres que apresentam determinadas características), seja para o setor da limpeza doméstica, amas, agricultoras, hotelaria, restaurantes, etc. Há casos em que o traficante alicia a vítima para exercer trabalhos que não possuem vínculo laboral (isto é, não possuem contratos de trabalho, levando a que estas fiquem em uma situação de irregularidade no país), mas que atraem as vítimas pela ideia de “liberdade” longe da região em que vivem. Muitas destas vítimas são atraídas através da internet, através da técnica loverboy em que o traficante/ recrutador namora com a vítima entre 6 meses e um ano, para depois a traficar[10] .

Outro ponto que será interessante indicar neste breve artigo diz respeito ao facto de a condição financeira ser um dos coeficientes considerados nesta somatória de causas que levam ao maior número de tráfico humano entre o género feminino: a pobreza possui um rosto substancialmente feminino e o tráfico não será indiferente a esta constatação. Sendo as mulheres as principais fontes inseridas em contextos sociais fragilizados, pelo facto de haver uma forte dependência econômica e do cargo que acaba por ocupar como progenitora, acabam serem mais vulneráveis e por serem mais suscetíveis em integrar a estatística de vítimas que entram na rede de tráfico sexual[11].

É necessária uma política de prevenção mais musculada, para além de uma maior eficácia na sinalização de vítimas (ou potenciais vítimas) de tráfico. 

De forma a identificar vítimas de tráfico, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima indica que é necessário ter em atenção as situações em que uma pessoa apresenta:

“Não possuir controlo dos seus documentos de identificação ou de viagem (passaporte, neste caso); houve indicações específicas sobre o que dizer quando estivesse perante um agente de autoridade; foi recrutada para fazer um trabalho específico, e depois forçada a fazer outro; está sujeita a ser retirada uma parte do ordenado à pessoa, para o pagamento de despesas relativas à viagem; está a ser forçada a práticas sexuais; não há liberdade de movimentos/deslocação; há perigo de vida ou ameaça contra familiares caso esta tente escapar; ameaça de deportação ou sofreria outra consequência no caso de procurar ajuda das autoridades; foi agredida ou privada de comida, água, sono, cuidados médicos ou outras necessidades básicas; não pode, livremente, contactar familiares e conhecidos; não pode livremente socializar com outras pessoas, nem mesmo praticar a sua religião”[12].

Todas estas situações descritas configuram potenciais vítimas de tráfico. Segundo Marta Pereira, Coordenadora do Centro de Acolhimento e Proteção a mulheres e seus filhos menores vítimas de Tráfico de Seres Humanos e seus filhos menores (doravante CAP), é preciso permitir à comunidade em geral e às organizações que lutam contra o tráfico de seres humanos que possam desenvolver mecanismos de sinalização, identificação e integração de vítimas deste crime[13]. O papel do CAP aqui é fundamental para prevenir e para acolher vítimas.

Conclusão

Concluo estas breves notas com a seguinte reflexão: constata-se que as condicionantes enfrentadas por mulheres vítimas de tráfico são desde logo muito mais acentuadas em referência a outros grupos suscetíveis de sofrerem a prática deste crime, seja em relação à sua condição como mulher no país de origem, seja devido a sua condição financeira[14] e maior susceptibilidade de sofrer exploração sexual. O que por si só requereria particular atenção na aplicação não só da lei, mas também da política de prevenção de forma a ajustar os mecanismos existentes à particularidade de cada vítima e potencial vítima.


FORMA DE CITAR:
R. ROCHA, Breves notas sobre o Tráfico de Seres Humanos e as Mulheres, NOVA Refugee Clinic Blog, Junho 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=breves-notas-sobre-o-trafico-de-seres-humanos-e-as-mulheres>


[1] É estudante internacional e frequenta o 3º ano do 1º ciclo (licenciatura) na NOVA School of Law. 

[2] UN WOMEN, 2020. Declaração interagencial das Nações Unidas sobre violência contra mulheres e meninas no contexto da COVID-19 consultado em linha em https://www.onumulheres.org.br/noticias/declaracao-interagencial-das-nacoes-unidas-sobre-violencia-contra-mulheres-e-meninas-no-contexto-da-covid-19/ [consultado em 14.06.2021]

[3] Código Penal Português, consultado em linha em, http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=109A0160&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo [consultado em 14.06.2021]

[4] Protocolo Palermo, Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada transnacional relativo à prevenção, à repressão e à punição do tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças (2003), consultado em linha em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/protocolo_adicional_conv_nu_trafico_mulheres_criancas.pdf [consultado em 14.06.2021]

[5] IV Plano de Ação para a Prevenção e o Combate ao Tráfico de Seres Humanos 2018-2021 (IV PAPCTSH 2018-2021),Resolução do Conselho de Ministros n.º 80/2018 de 19 de junho de 2018. Diário da República n.º 116/2018 – I Série. Presidência do Conselho de Ministros. Lisboa.

[6] Manual contra o tráfico de pessoas para profissionais do sistema de justiça penal / [org] ONU, UNODC – Escritório para as Nações Unidas sobre Drogas e Crime; coord. Joana Daniel-Wrabetz; tradução Ministério da Administração Interna. – Nova Iorque: ONU, 2009

[7] Kempadoo, K. (2005). “Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres” in cadernos pagu (25), julho-dezembro de 2005, pp.55-78. (trad. Plínio Dentzien).

[8] Interpol, Human Trafficking, consultado em linha em https://www.interpol.int/Crimes/Human-trafficking [14.06.2021].

[9] Neves, C. (2019). Fugiram para Portugal em busca de um sonho, acabaram na prostituição

consultado em linha em https://www.dn.pt/vida-e-futuro/60-das-vitimas-sao-traficadas-pela-familia-ou-amigos-10732549.html [14.06.2021].

[10] Neves, C. (2019). Fugiram para Portugal em busca de um sonho, acabaram na prostituição

consultado em linha em https://www.dn.pt/vida-e-futuro/60-das-vitimas-sao-traficadas-pela-familia-ou-amigos-10732549.html [14.06.2021].

[11] https://eg.uc.pt/bitstream/10316/89245/1/Trafico%20de%20mulheres%20para%20fins%20de%20exploracao%20sexual%20em%20Portugal.pdf

[12] APAV, consultado em linha em https://www.apav.pt/uavmd/index.php/pt/intervencao/trafico-de-seres-humanos [14.06.2021].

[13] Pereira, M. (2011). “O papel das Organizações não-governamentais nacionais e internacionais na prevenção do crime e na reabilitação das vítimas de tráfico” in Tráfico Desumano: Livro de Actas, Daniel-Wrabetz, J. (coord). pp. 58-60.

[14] Santos, S.B.; Gomes, C.; Duarte, M. (2010). Tráfico de Mulheres para fins de Exploração Sexual em Portugal: Um retrato empírico. Em: Cadernos de Administração Interna, Coleção de Direitos Humanos e Cidadania

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About Rafaela Rocha

É estudante internacional e frequenta o 3º ano do 1º ciclo (licenciatura) na NOVA School of Law. Exerce atividades extracurriculares na faculdade, tal como na atual posição de Vice-Presidente do Núcleo de Estudantes Internacionais (NEI) no mandato de 2020/2021, após exercer a posição de Coordenadora do Departamento de Integração e Interculturalidade também no mesmo núcleo autónomo (entre o mandato de 2018/2019).