O SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL NO REAGRUPAMENTO FAMILIAR

Ariana Nunes Paraíso/ February 5, 2022/

RESUMO

O aumento da população migrante verificado nos últimos anos conduziu à separação forçada de muitas famílias. Como consequência, muitas são as crianças refugiadas, separadas e desacompanhadas, que se encontram em condições especialmente vulneráveis. Nessa medida, incorre sobre os países de acolhimento a criação e tutela de mecanismos, políticas e práticas que, tendo os direitos e a proteção da criança como epicentro, promovam o seu bem-estar e salvaguardem o seu superior interesse, procurando, em primeira instância, acautelar o reagrupamento familiar.

PALAVRAS-CHAVE: Superior Interesse da Criança, Reagrupamento Familiar, Menor Não Acompanhado, Unidade da Família


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

De entre a população total de refugiados, estima-se que, cerca de metade, sejam crianças, situação inquietante uma vez que, para além de serem menores e, por conseguinte, expostas a toda a sorte de perigos, são também, muitas delas, crianças desacompanhadas, separadas das suas famílias.

Neste contexto tão preocupante, perfilam-se soluções adiantadas pelos países de acolhimento dessas crianças e que se consubstanciam em mecanismos que assentam na concretização do que se entende ser o desejável para servir o superior interesse da criança e que deve presidir às tomadas de decisões que digam respeito à sua vida. Compreende-se, assim, o envolvimento de tantas instituições que se batem pela defesa destas crianças e que procuram assegurar o seu bem-estar.

Em termos latos, o direito ao reagrupamento familiar traduz-se, hoje, num direito fundamental positivado em inúmeros diplomas normativos e instrumentos de soft law, que em si patenteiam um compromisso político que visa facilitar a reunião familiar[1]. Nesse prisma, sendo certo que na Convenção de Refugiados de 1951 não há referência ao reagrupamento familiar, a Ata Final da Conferência de Plenipotenciários da ONU declara que a unidade da família é, enfim, “(…) um direito essencial do refugiado”[2]. Nesta leitura, há uma recomendação dirigida aos governos no sentido da implementação de medidas que assegurem a proteção da família da pessoa refugiada, sublinhando-se, em simultâneo, e de forma incisiva, a proteção das crianças[3].

Ao nível da legislação da UE[4], a Diretiva do Reagrupamento Familiar[5] corresponde ao instrumento jurídico mais relevante no que respeita ao reagrupamento familiar de pessoas beneficiárias de proteção internacional e menores não acompanhados[6]. Este diploma contempla um direito fundamental ao reagrupamento familiar[7] para os membros da família nuclear, ou seja, o cônjuge e os filhos, incluindo os filhos adotados do requerente do reagrupamento ou do cônjuge[8], prevendo, ainda, as condições gerais para o reagrupamento.

No ordenamento jurídico português, a Diretiva europeia foi transposta pela Lei n.º 23/2007, de 4 de julho[9], que estipula, por sua parte, condições mais favoráveis que aquele diploma, no que concerne ao exercício do direito de reagrupamento familiar[10]. Assim, no nº 3 do seu artigo 98.º é disposto que aos beneficiários de proteção internacional é reconhecido o direito ao reagrupamento familiar, estando, por isso, dispensados[11] dos requisitos que a lei exige[12] para o exercício de tal direito. 

Nesse prisma, a legislação em vigor[13] no ordenamento jurídico português estipula quem se enquadra dentro dos membros da família, para fins de reagrupamento familiar[14]:

  • Cônjuge ou membro da união de facto; 
  • Filhos menores ou incapazes a cargo do casal ou de um dos cônjuges ou de um dos membros da união de facto; 
  • Filhos menores adotados, por decisão da autoridade competente do país de origem, pelo requerente ou pelo seu cônjuge ou membro da união de facto;
  • Ascendentes na linha reta e em primeiro grau do beneficiário de proteção internacional se este for menor;
  • Adulto responsável por menor não acompanhado

Destarte, aos beneficiários de proteção internacional em Portugal é concedido o direito a requerer reagrupamento familiar, com alguns membros da sua família[15], numa enumeração mais estrita do que aquela apresentada em sede de Lei de Estrangeiros[16], em virtude da transposição da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho[17].

Um dos pontos importantes que o procedimento do reagrupamento familiar deve procurar respeitar é o princípio do superior interesse da criança[18]. Em sede de Direito da União Europeia, os artigos 7.º e 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE veiculam os aspetos relacionados com o direito à vida familiar e o interesse superior da criança. Nesse prisma, também a Diretiva comunitária postula que cumpre aos Estados-Membros terem presente o interesse superior da criança no momento de proceder à análise individual de cada pedido de reagrupamento familiar. Por seu turno, a Comissão Europeia sublinhou a importância de o bem-estar da criança e a situação da família serem salvaguardados pelos Estados-Membros, que devem acautelar que uma criança não seja separada contra a sua vontade.

Aos Estados-Membros cumpre, segundo os termos do artigo 10.º da Convenção sobre os Direitos da Criança[19], proceder de forma positiva, humana e célere[20], relativamente aos pedidos de reagrupamento familiar. Também neste sentido se pronunciou o TJUE, ao declarar que aos Estados-Membros são impostas “obrigações positivas precisas”, no que respeita ao reagrupamento familiar[21].

Às autoridades responsáveis pelo reagrupamento familiar é exigido que fixem procedimentos para determinar o superior interesse da criança, nos casos de reagrupamento familiar que careçam de decisão. Assim, e em ordem a assegurar o superior interesse da criança, àquelas autoridades compete fornecer as razões implicadas nas decisões tomadas (positivas ou negativas), de forma a mostrar de que modo o interesse da criança presidiu ao processo de decisão.

Nessa medida, quando acolhida num dos Estados-Membros, a criança desacompanhada merece que, para o seu caso, sejam encontradas soluções que, a longo prazo, lhe endossem segurança. Deste modo, o princípio que visa garantir o seu superior interesse deve ser ativado por forma a que seja assegurado um ambiente seguro onde o seu desenvolvimento possa acontecer de maneira integral, provendo, a um tempo, não apenas a satisfação das suas necessidades e direitos, mas também a sua proteção face a situações de risco[22]. Para tanto, um primeiro passo passará por asseverar e respeitar a unidade familiar (o que implica, também, apoiar adequadamente os membros da família, que, uma vez reunidos, devem ser dotados de direitos e estatuto equivalentes), daqui se excetuando os casos em que a preservação do bem-estar ou segurança do menor separado ou não acompanhado aponte em sentido inverso[23]

Na vasta gama de ações que têm como epicentro a criança, está sempre subjacente como imperiosa a salvaguarda do seu superior interesse enquanto consideração primária[24]. Efetivamente, e de acordo com o Comité dos Direitos da Criança (CRC), aquilo que se considera como o superior interesse da criança, é, na realidade, um conceito triplo[25]: um direito fundamental, um princípio jurídico interpretativo e uma regra de procedimento. Este primado reporta-se a ações que visam a criança, quer individualmente, quer como um grupo, e aplica-se seja às ações (desenvolvidas relativamente à criança, entenda-se), seja à falta delas. Por outro lado, diz respeito às medidas que respeitam direta ou indiretamente a uma criança, isto é, medidas que têm na criança um alvo direto ou indireto.  Garantir e respeitar o interesse superior da criança é um preceito cujo cumprimento diz respeito a um conjunto lato de intervenientes que vão desde a totalidade das instituições públicas e privadas de assistência social, tribunais, autoridades administrativas e órgãos legislativos[26] que envolvam ou digam respeito a crianças, nas quais se inscrevem as que se relacionam com matérias do foro do asilo e migração. O interesse superior da criança deve ser, pois, transversal e ponderado em todos os domínios.

Aquilo que é a essência do que é o interesse superior da criança deve ser definido caso a caso, tendo em atenção a situação específica da criança, e, bem assim, o seu contexto, situação e necessidades pessoais. O Comité dos Direitos da Criança sinalizou como relevantes os elementos que a seguir se discriminam e que devem ser considerados aquando da avaliação do superior interesse da criança:  as suas opiniões, identidade, cuidados, proteção e segurança e preservação do ambiente familiar. Depois de criteriosamente aferido, o superior interesse da criança deve ser sopesado em relação a outros interesses, como sejam os de outras crianças, pais ou outros responsáveis. Ainda em conformidade com as disposições do CRC, o superior interesse da criança constitui-se como “alta prioridade” – não se limitando a ser uma de várias considerações –, preceito donde se infere que há que valorizar e reforçar sempre o que melhor serve a criança.

Também neste sentido, se por um lado, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a salientar, copiosamente, a importância de considerar o superior da criança como ponto basilar no exercício do reagrupamento familiar, por outro, tem vindo a destacar as eventuais violações ao texto da Convenção, quando aquele princípio não é devidamente tido em consideração[27].

De facto, a jurisprudência de Estrasburgo tem servido, de forma cabal, como base delimitadora do conteúdo mínimo do reagrupamento familiar, lido como um direito fundamental[28]. Com efeito, aquele tribunal tem sido chamado a analisar determinados fatores, tais como sejam a existência de laços familiares, a idade das crianças menores, o nível de integração dos membros da família no país de acolhimento, ou eventuais obstáculos ao exercício da vida familiar, no país de origem. Em paralelo, em MUGENZI v. FRANCE[29], o TEDH estipulou que, quando a um menor não acompanhado seja conferida proteção internacional e quando este requerer o reagrupamento familiar, é fulcral que o seu pedido seja pronta, cuidadosa e diligentemente avaliado[30].

Com efeito, o TEDH tem vindo a suportar o princípio de que o superior interesse da criança deve ser encarado como uma premissa primária[31] ou mesmo primordial[32] no que se refere ao equilíbrio de interesses, sublinhando, contudo, que, de modo algum, as crianças possam ser usadas como um “trunfo” para conseguir a residência legal (da família) no estado de acolhimento[33].

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dada a sua vulnerabilidade e necessidade de proteção, os menores separados e não acompanhados carecem de respostas prontas e diligentes. Este requisito resulta não apenas da sua condição de ser criança, mas também da exposição a riscos que tal condição acarreta, seja nos países de origem, de acolhimento, ou mesmo de trânsito. 

Por esse motivo, qualquer que seja o Estado-Membro que as venha a acolher, terá que ter sempre presente esta conjugação de factos e fatores e, em consequência, procurar os meios para lidar com a complexidade desta situação, não perdendo de vista a exigência de promover o desenvolvimento integral destas crianças, frequentemente impedidas de regressarem aos seus países de origem. Face a esta limitação, cabe àquele Estado zelar pela sua proteção, facilitando, ao mesmo tempo, o reagrupamento familiar, determinante na promoção do seu bem-estar. Porém, nem sempre este expediente é viável, o que reverte numa maior responsabilidade para o país de acolhimento que terá de traçar mecanismos que respondam a uma integração e uma estabilidade positivas. Cabe, pois, aos Estados a obrigação inequívoca e incontornável de integrar e proteger estas crianças que terão de ser vistas, em primeiro plano, como crianças[34].


[1] Cfr., entre outros, a Declaração de Nova Iorque para Refugiados e Migrantes, o Pacto Global para os Refugiados ou o Pacto Global para a Migração

[2] NAÇÕES UNIDAS – Final Act and Convention Relating to the Status of Refugees. Em United Nations Conference of Plenipotentiaries On The Status of Refugees And Stateless Persons. Julho (1951): p. 8

[3] ACNUR – Handbook and Guidelines on Procedures and Criteria for Determining Refugee Status under the 1951 Convention and the 1967 Protocol Relating to the Status of Refugees, p. 41, parágrafo 182

[4] Neste ponto, ver também a DIRETIVA 2013/33/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional 

[5] Cfr. DIRETIVA 2003/86/CE DO CONSELHO de 22 de setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar

[6] Cfr. o Capítulo V da Diretiva

[7] Também neste sentido, CONSELHO DA EUROPA – Family Reunification For Refugees and Migrant Children: Standards and promising practices. (2020), p. 30

[8] Cfr. o Considerando 9 da Diretiva

[9] «Lei de Estrangeiros» – Lei 23/2007 de 4 de julho, referente à Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional

[10] Cfr. GIL, Ana Rita – Le droit fondamental au regroupement familial en droit portugais. Lisboa: Academia. (s.d.): p. 17

[11] Cfr. o nº2 do art. 101º da Lei 23/2007

[12] Cfr. o nº1 do art. 101º da Lei 23/2007

[13] Cfr. a al. k) do nº1 do art. 2º da Lei 27/2008 e o nº3 do art. 98º e o nº2 do art. 99º da Lei 23/2007

[14] JRS – Direito ao Reagrupamento Familiar de Requerentes e Beneficiários de Proteção Internacional. (s.d.): (n.p.)

[15] Cfr. o nº3 do art. 98º da Lei 23/2007

[16] Cfr. o nº 1 do art. 99º da Lei 23/2007 

[17] Neste sentido, cfr. JRS – Direito ao Reagrupamento Familiar de Requerentes e Beneficiários de Proteção Internacional. (s.d.): (n.p.)

[18] Cfr. o nº1 do art. 78º da Lei 27/2008

[19] «Nos termos da obrigação decorrente para os Estados Partes ao abrigo do n.º 1 do artigo 9.º, todos os pedidos formulados por uma criança ou por seus pais para entrar num Estado Parte ou para o deixar, com o fim de reunificação familiar, são considerados pelos Estados Partes de forma positiva, com humanidade e diligência. Os Estados Partes garantem, além disso, que a apresentação de um tal pedido não determinará consequências adversas para os seus autores ou para os membros das suas famílias.», cfr. o nº1 do art. 10º da Convenção sobre os Direitos da Criança

[20] Cfr. COMISSÃO EUROPEIA – Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho sobre as orientações para a aplicação da Diretiva 2003/86/CE relativa ao direito ao reagrupamento familiar. COM(2014) 210 final, pp. 26 e 27.

[21] Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 27 de junho de 2006, Parlamento Europeu contra Conselho da União Europeia, Processo C-540/03, parágrafo 60

[22] GIL, Ana Rita – Crianças Não Acompanhadas carecidas de Proteção Internacional: Que Soluções a Longo Prazo? Lex Familiae, ano 15. janeiro-junho:29 (2018): p.6

[23] Neste sentido, EUROPEAN ASYLUM OFFICE (EASO) – Guia prático sobre o superior interesse da criança nos procedimentos de asilo. ISBN 9789294851666, p. 26

[24] COMITÉ PARA OS DIREITOS DA CRIANÇA – General Comment No 14: On the right of the child to have his or her best interests taken as a primary consideration (art. 3, para. 1). 14:14 (2013): p. 3, parágrafo 1.

[25] Idem, p. 4, parágrafos 6 e 7

[26] Cfr. o nº1 do art. 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança

[27] Tal foi o caso em EL GHATET v. SUÍÇA, quando o Tribunal considerou verificar-se uma violação ao art. 8º da Convenção. Cfr. Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de 8 de novembro de 2016, EL GHATET v. SWITZERLAND, Application No. 56971/10

[28] GIL, Ana Rita – Le droit fondamental au regroupement familial en droit portugais. Lisboa: Academia. (s.d.) p. 21

[29] Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (Quinta Secção), de 10 de julho de 2014, MUGENZI v. FRANCE, Application No. 52701/09

[30] Idem, parágrafo 52

[31] Neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (Grande Secção), de 26 de novembro de 2013, X. v. LATVIA, Application No. 27853/09: parágrafo 95

[32] Cfr. o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (Grande Secção), de 6 de julho de 2010, NEULINGER and SHURUK v. SWITZERLAND, Application No. 41615/07: parágrafo 135

[33] Cfr.  EL GHATET v. SUÍÇA (2016), parágrafo 46

[34] Neste sentido, ver GIL, Ana Rita – Crianças Não Acompanhadas carecidas de Proteção Internacional: Que Soluções a Longo Prazo? Lex Familiae, ano 15. janeiro-junho:29 (2018): p.13


COMO CITAR ESTE BLOG POST:

Paraíso, Ariana Nunes. “O Superior Interesse Da Criança Como Princípio Fundamental No Reagrupamento Familiar”. NOVA Refugee Clinic Blog, janeiro de 2022. Disponível em: https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=o-superior-interesse-da-crianca-como-principio-fundamental-no-reagrupamento-familiar

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About Ariana Nunes Paraíso

Doutoranda em Direito e Segurança na NOVA School of Law, instituição onde, em 2019, concluiu o Mestrado em Direito e Segurança. É auditora de segurança interna e jurista, licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2016).