Aplicação da pena de expulsão a cidadãos nacionais de um Estado-Membro

Otávio de Figueiredo Raupp/ March 23, 2021/

Otávio de Figueiredo Raupp[1]

RESUMO:

O direito de livre circulação e permanência tem uma rigorosa proteção dentro do direito da União Europeia, fundamentado no artigo 21.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Entretanto, no âmbito do direito derivado, a Diretiva 2004/38/CE estabelece que apenas por razões de ordem pública ou segurança pública pode um Estado-Membro decidir o afastamento do seu território de um cidadão da União, designadamente mediante a aplicação de uma pena de expulsão. Em todo o caso, estando aquelas razões vazadas em conceitos indeterminados, esta circunstância normativa permite aos Estados-Membros uma significativa margem de discricionariedade na imposição da sobredita pena acessória.

I – Considerações iniciais

O objeto deste artigo circunscreve-se à análise da questão da pena de expulsão do território de um Estado-Membro, nos casos em que o expulso é nacional de um outro Estado-Membro.

Os Estados-Membros têm o poder soberano de decidir, verificados certos pressupostos legalmente estabelecidos, se um determinado estrangeiro reúne ou não as condições que lhe permitem permanecer no território sob sua jurisdição. Contudo, quando se trata de cidadãos da União, este poder sofre uma maior limitação imposta por diversos princípios e regras a nível do direito da União Europeia, tendentes a acautelar, maximamente, o direito de livre circulação e permanência dos nacionais europeus.

Nesta sede, os conceitos de segurança pública e ordem pública assumem uma particular relevância normativa, visto que são os referentes principais no que respeita à adoção de uma medida de afastamento, in casu a pena acessória de expulsão.

Importa, todavia, a uma melhor compreensão desta temática, que analisemos mais detalhadamente os fundamentos e limites à aplicação da pena de expulsão, particularmente à luz da Diretiva 2004/38/CE[2] e da jurisprudência do TJUE.

II – Direito à livre circulação e permanência

A liberdade de circulação e permanência de nacionais da UE é, desde Maastricht[3], uma das dimensões fundamentais da construção progressiva de um espaço de liberdade, segurança e justiça. Assim, a Diretiva 2004/38/CE inscreve-se nesta mesma linha, visando a simplificação e reforço daquele direito[4]. Entretanto, no seu Capítulo VI, estabelece certas providências legislativas destinadas a limitar a entrada e permanência de cidadãos europeus, sempre que especiais razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública assim o imponham. Afora as medidas ditadas por razões de saúde pública, que não relevam para a matéria que nos ocupa, são as disposições restritivas atinentes aos dois outros fundamentos que importam à nossa discussão.

Neste sentido e em conformidade com o art. 27.º, ns.º 1 e 2, Diretiva 2004/38/CE, constatamos, desde logo, que as sobreditas razões de ordem pública ou segurança pública só prevalecem desde que sejam observados determinados requisitos legais, a saber:

  1. não invocação para fins económicos destas razões;
  2. traduzindo-se a expulsão numa medida que pode prejudicar seriamente a pessoa em causa, a sua adopção somente se justificará caso se revele adequada, necessária e proporcional stricto sensu, tendo, designadamente, em consideração o grau de integração social do expulsando, a duração da sua residência no Estado-Membro de acolhimento, a idade, o estado de saúde, a situação económica e familiar, assim como os laços com o país de origem (princípio da proporcionalidade);
  3. apenas podem ser utilizadas justificações atinentes ao comportamento da pessoa em questão, não as adstritas a finalidades de prevenção geral, devendo esse comportamento constituir uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade de acolhimento;
  4. a existência de condenações penais anteriores não revela, por si só, apenas podendo ser considerada caso indicie uma propensão para a reincidência.

Por outro lado, há na diretiva em questão uma maior proteção aos long term residents (mais de 10 anos), os quais só podem ser expulsos havendo “razões imperativas de segurança pública”[5], motivo que é mais exigente do que vale para os titulares de residência permanente, referindo-se aí a lei europeia a “razões graves de ordem pública ou de segurança pública”[6].

Ainda de maneira a salvaguardar a liberdade de circulação e permanência, não se permite o afastamento por tempo indeterminado. Assim, o art. 32.º da Diretiva 2004/38/CE estatui que o cidadão da União Europeia, objeto de uma medida de interdição de entrada no território, poderá apresentar um pedido de levantamento dessa proibição num prazo razoável, mas sempre três anos após a respetiva execução, alegando uma “alteração material das circunstâncias” que anteriormente fundamentaram o seu afastamento.

Por último, no artigo 33.º, n.º 2, da Diretiva 2004/38/CE, reforça-se a necessidade do caráter atual e real da ameaça que fundamenta a expulsão. Neste sentido, passados que sejam 2 ou mais anos sobre a data da decisão que a determinou, a execução desta só será possível caso não se verifique uma alteração material das circunstâncias subjacentes àquela decisão. Acontece, portanto, que, sendo a pena acessória de expulsão, necessariamente, efetivada após o cumprimento, ao menos, parcial da pena principal, quando tal execução ocorre já terão decorrido, por regra, os sobreditos 2 anos, razão pela qual o tribunal terá de reavaliar os motivos do afastamento.

III – Razões de ordem pública ou segurança pública

A indeterminabilidade intrínseca dos conceitos de ordem pública e segurança pública, e a faculdade dos Estados-Membros os definirem de forma autónoma acabam por favorecer a incerteza jurídica e possibilitar uma aplicação não uniforme no espaço da União, tudo isso implicando uma maior fragilidade da liberdade de circulação e permanência. Efetivamente, cada Estado-Membro tende a servir-se da margem de apreciação que lhe é concedida para restringir mais ou menos os direitos de entrada e residência nos respectivos territórios, em prejuízo do princípio de realização comum dos objetivos da União.

Acresce que a qualificação das ditas razões como graves ou imperativas dificulta ainda mais a concretização destes motivos ou fundamentos, circunstância que se revela, particularmente, inquietante em material penal, dada a sua maior sensibilidade em sede de direitos e liberdades dos cidadãos.

Em todo o caso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem vindo a colaborar numa melhor delimitação semântica dos conceitos em questão, assunto de que nos ocuparemos de seguida.

IV – Tribunal de Justiça da União Europeia

Em 4 de dezembro de 1974, o TJUE, numa decisão a título prejudicial, procedeu a uma clarificação da noção de ordem pública no contexto comunitário, afirmando a este respeito que, “nos casos em que é utilizada como justificação para derrogar o princípio fundamental da livre circulação dos trabalhadores, deve ser interpretada de forma restritiva, de modo a que o seu âmbito não possa ser unilateralmente determinado por cada Estado-Membro sem o controlo das instituições comunitárias”[7].

Mais tarde, o mesmo tribunal europeu, através do seu Acórdão de 23 de Novembro de 2010[8], procurou uma determinação do conceito “razões imperativas de segurança pública”, contido no art. 28.º, n.º 3, al. a), Directiva 2004/38/CE, afirmando, no n.º 41, que esse conceito “pressupõe, não apenas a existência de uma ameaça à segurança pública, mas, além disso, que essa ameaça apresente um grau de gravidade particularmente elevado”. Acresce que a noção de “segurança pública”, cobrindo “ao mesmo tempo a segurança interna de um Estado-Membro e a sua segurança externa” deverá considerar-se comprometida, quer se verifique um “ataque ao funcionamento das instituições e dos serviços públicos essenciais” e à “sobrevivência da população”, quer ocorra “uma perturbação grave das relações externas ou da coexistência pacífica dos povos, ou ainda um ataque a interesses militares[9]”.

Também o TJUE, no Acórdão de 22 de Maio de 2012[10], sublinhando que os Estados-Membros gozam de uma relativa autonomia na densificação do conceito “razões imperativas de segurança pública”, afirma que as infrações penais constantes do artigo 83.º, n.º 1, segundo parágrafo, TFUE (trata-se de criminalidade particularmente grave com dimensão transfronteiriça) “constituem uma violação especialmente grave de um interesse fundamental da sociedade, suscetível de representar uma ameaça direta para a tranquilidade e a segurança física da população e, assim, enquadrar-se no conceito de ‘razões imperativas de segurança pública’[11]”.

Importa ainda referir o Acórdão do TJUE, de 4 de outubro de 2012[12], em conformidade com o qual este tribunal, reiterando jurisprudência anterior, confirma que o conceito de “ordem pública” pressupõe, “além da perturbação da ordem social que qualquer infração à lei constitui, a existência de uma ameaça real, atual e suficientemente grave para um interesse fundamental da sociedade[13]”.

Numa perspetiva um tanto diversa, resulta interessante a posição assumida no caso Donatella Calfa[14] pelo advogado-geral La Pergola, a título prejudicial, a conformidade da lei nacional em que se prevê a aplicação da pena acessória de expulsão com o direito comunitário, designadamente em sede de livre circulação das pessoas e livre prestação de serviços. Assim, o referido causídico acaba por concluir pelo desrespeito do princípio da igualdade de tratamento, na medida em que pela prática do mesmo facto (detenção de estupefacientes para uso próprio) os cidadãos estrangeiros são punidos mais severamente do que os nacionais: “noutros termos, pode ver-se uma perspectiva de discriminação no facto de, face ao mesmo tipo de infração penal, ser aplicada aos nacionais apenas a pena principal enquanto, relativamente aos estrangeiros, a essa pena acresce uma pena acessória”[15].

V – Considerações finais

Tendo em consideração tudo o que é dito, conclui-se que a aplicação da pena de expulsão a nacionais europeus deve fundamentar-se em questões de ordem pública ou segurança pública. Todavia e ainda que circunscrita a casos de ameaça real e suficientemente grave a um interesse fundamental do Estado de acolhimento, a verdade é que a indeterminação semântica de que padecem os conceitos que servem de fundamento à imposição daquela pena contribui, sobremaneira, para um protagonismo excessivo das autoridades nacionais, a expensas da implementação mais uniforme do princípio europeu da liberdade de circulação e permanência. Circunstância esta que, sendo já grave na perspetiva de uma UE que se pretende cada vez mais integrada e próxima, se revela ainda mais prejudicial por se inscrever numa área – a penal – particularmente sensível no que toca aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

Por último, vale a pena refletir sobre o respeito pelos princípios de não discriminação e proporcionalidade, especialmente convocados pelo advogado-geral La Pergola, nas suas conclusões, desde logo porque – como o próprio afirma – “é precisamente o respeito do princípio da proporcionalidade que assegura a igualdade de tratamento”[16].


FORMA DE CITAR:
O. F. RAUPP, Aplicação da pena de expulsão a cidadãos nacionais de um Estado-Membro, NOVA Refugee Clinic Blog, Março 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=aplicacao-da-pena-de-expulsao-a-cidadaos-nacionais-de-um-estado-membro>


[1] Estudante de Direito – Licenciatura na NOVA School of Law. Investigador na linha de Migração & Poder Punitivo do Estado, da NOVA Refugee Clinic.

[2] A Diretiva 2004/38/CE foi transposta para a nossa ordem jurídica interna através da Lei n.º 37/2006, de 9 de agosto.

[3] Tratado de Maastricht, artigo 45.º.

[4] Directiva 2004/38/CE, considerando 2, in fine.

[5] Cfr. art. 28.º, n.º 3, Directiva 2004/38/CE.

[6] Cfr. art. 28.º, n.º 2, Directiva 2004/38/CE.

[7] Acórdão do TJUE, de 4 de dezembro de 1974 (Processo C-41/74), 18, 2.º parág.

[8] Acórdão do TJUE, de 23 de novembro de 2010 (Processo C-145/09).

[9] Acórdão do TJUE, de 23 de novembro de 2010 (Processo C‑145/09), ns.º 43 e 44.

[10] Acórdão do TJUE, de 22 de maio de 2012 (Processo C-348/09).

[11] Acórdão do TJUE, de 22 de maio de 2012, (Processo C‑348/09), n.º 28.

[12] Acórdão do TJUE, de 4 de outubro de 2012 (Processo C-249/11).

[13] Acórdão do TJUE, de 4 de outubro de 2012 (Processo C-249/11), n.º 40.

[14] Acórdão do TJUE, de 19 de Janeiro de 1999 (Processo C-348/96).

[15] Conclusões do advogado-geral A. La Pergola, apresentadas em 17 de fevereiro de 1998 (Processo C-348/96), n.º 6, in fine.

[16]  Conclusões do advogado-geral A. La Pergola, apresentadas em 17 de fevereiro de 1998 (Processo C-348/96), n.º 7.

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  • Frequenta o 3.º ano da licenciatura na NOVA School of Law. Tem grande interesse nas áreas de Direito Internacional Público e Direito Europeu. Atualmente Team Member of the Academic Activities Department for the LisboMUN Association.

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Frequenta o 3.º ano da licenciatura na NOVA School of Law. Tem grande interesse nas áreas de Direito Internacional Público e Direito Europeu. Atualmente Team Member of the Academic Activities Department for the LisboMUN Association.