LEIS DOS ESTRANGEIROS E DO ASILO: CONSONÂNCIAS E DISSONÂNCIAS (Serão os refugiados imigrantes especiais?)

João Athayde Varela/ June 1, 2021/

João Athayde Varela[1]

            RESUMO:

Tendo por finalidade última esclarecer se os refugiados lato sensu são imigrantes especiais em face do nosso direito positivo, procede-se à comparação das Leis dos Estrangeiros e do Asilo – os dois diplomas legislativos que abordam mais direta e amplamente a problemática dos estrangeiros -, analisando as respectivas normas em cada uma das fases em que se desdobra a estadia destes cidadãos em território nacional: entrada, permanência e saída ou afastamento.

            PALAVRAS-CHAVE: imigrante; refugiado; autorização de residência; decisão de afastamento; impugnação jurisdicional


  1. Introdução

            “As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo[2]”. Todavia e dentre as pessoas que migram, procurando um país que lhes ofereça melhores condições de vida, são as necessitadas de proteção internacional as que revelam uma maior vulnerabilidade pessoal e social e reclamam garantias de proteção mais eficazes. Neste sentido, fala-se hoje de “migração voluntária” vs. “migração forçada”, respondendo a primeira à vontade própria de quem procura uma situação económica mais favorável, diferentemente da segunda que é determinada por razões políticas ou outras que se sobrepõem e condicionam, decisivamente, a livre escolha do migrante[3].

            Esta realidade dicotómica acaba por se refletir no direito positivado, tanto na fase de entrada do cidadão estrangeiro em território nacional, como no decurso da sua permanência ou ainda no momento da saída ou afastamento. Destarte, procurar-se-á, tomando por referência os dois diplomas legislativos que se ocupam mais diretamente desta problemática dos estrangeiros: Lei n.º 23/2007, de 4 de julho (doravante, Lei dos Estrangeiros) e Lei n.º 27/2008, de 30 de junho (doravante, Lei do Asilo), estabelecer – fase a fase – as diferenças que a dita dicotomia, legalmente, determina.  

  • Situação à entrada

            Tudo se inicia à data da entrada do cidadão estrangeiro em território nacional. Assim, caso se trate de “imigrante voluntário”, não existe um direito de entrada. É dizer que o Estado de destino pode recusar-lhe a entrada, designadamente se não reunir, cumulativamente, os requisitos que a lei prevê [cfr. art. 32.º, n.º 1, al. a), Lei dos Estrangeiros]: abreviadamente, um documento de viagem reconhecido como válido e um visto válido e adequado à finalidade da deslocação. Estará, portanto, o imigrante em situação administrativa irregular, podendo ser a todo o tempo objeto de uma decisão administrativa de afastamento coercivo [cfr. art. 134.º, n.º 1, al. a), Lei dos Estrangeiros], caso não tenha sido antes repatriado a cargo da empresa aérea ou marítima que o transportou até território português (cfr. art. 41.º, n.º 1, Lei dos Estrangeiros).

            Em contrapartida, estando em causa um requerente de proteção internacional[4], a situação com que se depara, à entrada em território nacional, revela-se, substancialmente, diferente: desde a apresentação do respectivo pedido, que deve ser feita sem demora (cfr. art. 13.º, n.º 1, Lei do Asilo), o requerente beneficia-se de um direito de permanência no nosso país (cfr. art. 11.º, n.º 1, Lei do Asilo)[5]. Por outro lado, estão asseguradas as condições materiais de acolhimento, designadamente no que respeita a alojamento, alimentação, assistência médica e educação, de modo que o requerente, que não disponha de meios suficientes para permitir a sua subsistência, possa ver satisfeitas as suas necessidades básicas em condições de dignidade humana (cfr. art. 56.º, Lei do Asilo).

            De notar, por fim, que, ao contrário do que se verifica com o imigrante comum, sendo negada a proteção internacional, a impugnação judicial da respectiva decisão administrativa beneficia-se de efeito suspensivo, não, meramente, devolutivo (cfr. arts. 22.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, 30.º, n.º 1, 33.º, n.º 6 e 44.º, n.º 1, Lei do Asilo).

  • Situação durante a permanência

            Partindo do pressuposto que se trata de um imigrante que procura o nosso país para trabalhar, deverá este ser portador de um visto de residência para exercício de atividade profissional subordinada (cfr. arts. 58.º, n.º 1 e 59.º, Lei dos Estrangeiros). No decurso da vigência deste visto, que é de quatro meses (cfr. art. 58.º, n.º 2, Lei dos Estrangeiros)[6], caberá ao cidadão estrangeiro solicitar ao SEF, nos termos do art. 81.º, Lei dos Estrangeiros, autorização de residência (temporária), a qual está sujeita às condições – gerais e especiais – previstas, respectivamente, nos arts. 77.º, n.º 1 e 88.º, n.º 1, Lei dos Estrangeiros[7].

            Esta autorização de residência – que garante ao respectivo titular, entre outros, os direitos, expressamente, previstos no art. 83.º, n.º 1, Lei dos Estrangeiros: direitos à educação e ensino, trabalho, saúde e acesso ao direito e aos tribunais – tem a validade de um ano contado a partir da data da emissão do respectivo título, sendo renovável por períodos sucessivos de dois anos, desde que observadas as condições, especialmente, previstas na lei (cfr., respectivamente, arts. 75.º, n.º 1 e 78.º, n.º 2, Lei dos Estrangeiros).

            Passados, pelo menos, cinco anos sobre a concessão de autorização de residência temporária, poderá o respectivo titular requerer uma autorização de residência permanente, a qual lhe será outorgada se estiverem, também, cumpridas as demais condições previstas no art. 80.º, n.º 1, Lei dos Estrangeiros. Esta outra autorização de residência não tem limite de validade (cfr. art. 76.º, n.º 1, Lei dos Estrangeiros).

            Diversamente, o requerente de proteção internacional, que veja o seu pedido admitido, beneficia-se, de imediato, de uma autorização de residência provisória, válida pelo período de seis meses, mas renovável até à decisão final (cfr. art. 27.º, n.º 1, Lei do Asilo). Também a partir desta data, poderá o requerente aceder ao mercado de trabalho, mantendo-se este direito até à prolação da sentença que julgue, em definitivo, improcedente o pedido de proteção internacional (cfr. art. 54.º, ns.º 1 e 4, Lei do Asilo).

            Após a concessão do estatuto de refugiado ou de proteção subsidiária, é concedida aos respectivos beneficiários – sem outros requisitos – uma autorização de residência válida por cinco anos, renovável por iguais períodos, ou de três anos, renovável por iguais períodos, consoante se trate, respectivamente, de refugiado[8] ou beneficiário de proteção subsidiária[9] (cfr. art. 67.º, ns.º 1 e 2, Lei do Asilo), assim como é emitido, tratando-se de refugiado e desde que o requeira, um título de viagem que lhe permita viajar fora do território nacional (cfr. art. 69.º, n.º 1, Lei do Asilo)[10].

            Quanto ao mais, se, por um lado, o apoio social acima referido cessa a partir do exercício de emprego remunerado (cfr. art. 71.º, n.º 1, Lei do Asilo), por outro, os beneficiários de proteção internacional, particularmente, vulneráveis (incluindo os menores) são objeto de medidas de assistência especiais (cfr. arts. 70.º, n.º 1, 73.º, ns.º 2 e 3, 77.º, 78.º, 79.º e 80.º, Lei do Asilo).

  • Situação à saída

            Nesta fase, tanto o imigrante “voluntário” como o “imigrante forçado” podem ser objeto de uma decisão – administrativa ou judicial – de afastamento coercivo do território nacional. Efetivamente e no que respeita ao segundo, caso o pedido de proteção internacional seja considerado inadmissível ou objeto de uma decisão de recusa, ou verificando-se ainda a perda do direito de proteção internacional, a Lei do Asilo determina a aplicação subsidiária da Lei dos Estrangeiros (cfr., respectivamente, arts. 21.º, n.º 3, 26.º, n.º 3, 33.º, n.º 9, 31.º, n.º 2 e 42.º, n.º 2, Lei do Asilo).

            Se o estrangeiro – refugiado ou não – praticar algum crime, poderá ser-lhe imposta a pena acessória de expulsão, cujos pressupostos variam, mas apenas em função do agente residir ou não em Portugal[11] (cfr. art. 151.º, ns.º 1 a 3, Lei dos Estrangeiros).

            Em todo o caso, a lei prevê, para todas as hipóteses, certos limites à expulsão, que se destinam a acautelar os laços afetivos criados pelo cidadão estrangeiro com o país de acolhimento e só cedem “em caso de suspeita fundada da prática de crimes de terrorismo, sabotagem ou atentado à segurança nacional ou de condenação pela prática de tais crimes” (cfr. art. 135.º, Lei dos Estrangeiros).

            Convirá sublinhar ainda a consagração pelas Leis dos Estrangeiros e do Asilo do princípio de non-refoulement, especialmente previsto no art. 33.º, Convenção de Genebra[12] [13], que assume um significado maior tratando-se dos beneficiários de proteção internacional (cfr., respectivamente, arts. 143.º, Lei dos Estrangeiros, e 47.º, Lei do Asilo).

  • Conclusões

            Respondendo, agora e em jeito de síntese conclusiva, à questão incluída no título deste artigo: serão os refugiados imigrantes especiais?, parece não haver dúvida que a opção deverá ser pela afirmativa, no sentido de que gozam à face da lei de um tratamento mais favorável. Efetivamente,

  • beneficiam-se, logo à entrada, de um direito de permanência, que os coloca a coberto de qualquer procedimento administrativo visando o seu afastamento;
  • diferentemente do que sucede com os demais estrangeiros, a impugnação jurisdicional das decisões administrativas negativas tem efeito suspensivo;
  • até ao exercício remunerado de uma profissão, usufruem de apoio social, designadamente no que respeita a alojamento e alimentação;
  • uma vez admitido o respectivo pedido de proteção internacional, são titulares de uma autorização de residência provisória, sendo-lhes ainda concedido o acesso ao mercado de trabalho;
  • após a outorga do estatuto de refugiado ou da proteção subsidiária, é-lhes atribuída sem mais uma autorização de residência;
  • tratando-se de refugiados, podem estes requerer um título de viagem, que os habilita a deslocarem-se para fora do território nacional;
  • sendo objeto de uma decisão de afastamento, esta não poderá traduzir-se no envio para o país de origem ou residência habitual, enquanto persistirem aí as razões que determinaram a concessão do estatuto de beneficiário de proteção internacional (princípio de non-refoulement).  

FORMA DE CITAR:
J.A. VARELA, Leis dos Estrangeiros e do Asilo: Consonâncias e Dissonâncias (Serão os refugiados imigrantes especiais?), NOVA Refugee Clinic Blog, Maio 2021, disponível em <https://novarefugeelegalclinic.novalaw.unl.pt/?blog_post=leis-dos-estrangeiros-e-do-asilo-consonancias-e-dissonancias-serao-os-refugiados-imigrantes-especiais>


[1] Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade Nova, investigador doutorado integrado do Centro de I&D sobre Direito e Sociedade (CEDIS) e Team Leader do Grupo “Migração & Poder Punitivo do Estado” da NOVARefugee Clinic.

[2] FRANCISCO, Discurso do Papa Francisco ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé para as felicitações de bons votos, 11 de janeiro de 2016 (disponível em www.vatican.va).

[3] Preferindo a designação “imigrante forçado” à de “refugiado”, em contraponto à de “imigrante voluntário”, GIL, Ana Rita, “Deve distinguir-se entre Refugiado e Imigrante?”, em Teresa Pizarro Beleza et alteri (coords.), Olhares sobre as Migrações, a Cidadania e os Direitos Humanos (na História e no século XXI), Petrony Editora, Lisboa, 2020, pp. 82 e s.

[4] Diz-se requerente de proteção internacional o estrangeiro ou apátrida considerado refugiado (vide nota de rodapé n.º 8) ou beneficiário de proteção subsidiária (vide nota de rodapé n.º 9).

[5] Nos termos do art. 11.º, n.º 2, Lei do Asilo, “este direito de permanência não habilita o requerente à emissão de uma autorização de residência”.

[6] Todavia, o prazo de 4 meses poderá ser prorrogado até 90 dias, admitindo-se ainda uma extensão desta prorrogação, na hipótese de estar pendente um pedido de autorização de residência [cfr. art. 72.º, ns.º 1, al. c) e 2, Lei dos Estrangeiros].

[7] Em alternativa, poderá o cidadão estrangeiro lançar mão do procedimento especial consagrado no art. 88.º, n.º 2, Lei dos Estrangeiros, particularmente vocacionado para quem, tendo entrado, legalmente, em Portugal, esteja, agora, em situação administrativa irregular (v.g., titular de um visto de curta duração, que caducou), pois dispensa a apresentação de visto de residência para exercício de atividade profissional subordinada, desde que o requerente possua um contrato de trabalho ou promessa de contrato de trabalho.

[8] Por refugiado entende-se o estrangeiro ou apátrida perseguido ou gravemente ameaçado de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou ainda que, receando com fundamento ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possa ou, por esse receio, não queira voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual (cfr. art. 3.º, ns.º 1 e 2, Lei do Asilo).

[9] Por beneficiário de proteção subsidiária entende-se o estrangeiro ou apátrida que, não podendo ser considerado refugiado, está, de todo o modo, impedido ou se sente impossibilitado de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, seja em virtude da sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, seja por correr o risco de sofrer ofensa grave (cfr. art. 7.º, ns.º 1 e 2, Lei do Asilo)

[10] O beneficiário de proteção subsidiária, caso não possa, comprovadamente, obter um passaporte nacional, terá direito, mediante requerimento, a um passaporte português para estrangeiro que lhe permita viajar fora do território nacional (cfr. art. 69.º, n.º 2, Lei do Asilo).

[11] Releva, também, o tipo de residência, pois sendo permanente o agente só poderá ser expulso “quando a sua conduta constitua perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional” (cfr. art. 151.º, n.º 3, Lei dos Estrangeiros).

[12] Aprovada para adesão pelo Decreto n.º 43 201, de 1 de outubro de 1960.

[13] Segundo o art. 33.º, Convenção de Genebra, “nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”, admitindo-se, porém, que “o benefício da presente disposição não poderá ser invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país”.

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About João Athayde Varela

Licenciado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduou-se pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da mesma Faculdade e Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais pela Nova School of Law.