A situação dos refugiados e migrantes durante a crise pandémica COVID 19: Uma crise dentro de outra crise? Um olhar especial sobre o mundo do trabalho

Maria Helena Varela/ November 30, 2020/

Maria Helena Varela[1]

A atual crise pandémica COVID 19 está a ter um impacto sem precedentes no mundo do trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que cerca de 2,2 mil milhões de trabalhadores, que representam cerca de 68% da força de trabalho global, vivem em países onde foi recomendado ou necessário encerrar locais de trabalho[2]. Os trabalhadores migrantes, por sua vez, representam 4,7% da força de trabalho mundial (cerca de 164 milhões de trabalhadores[3]), sendo quase metade desta percentagem constituída por mulheres.

Em muitos países, os trabalhadores migrantes incorporam uma parte considerável de mão-de-obra nacional, contribuindo, significativamente, para o crescimento económico-social dos países de destino[4]. Muitos deles encontram-se, neste momento, a trabalhar na “linha da frente”, em áreas cruciais na conjuntura atual, tais como, a saúde, os transportes, os serviços, a construção civil, a agricultura e a transformação agroalimentar. No entanto, a maioria dos trabalhadores migrantes está concentrada em sectores da economia com elevados níveis de precariedade, integrando a designada economia informal[5], caracterizada pelo trabalho temporário, por salários baixos e por baixos índices de proteção social. Estes indicadores revelam claramente uma realidade: os trabalhadores migrantes estão entre os mais vulneráveis.

No que se refere à população de refugiados, pelo menos 134 países no mundo recebem refugiados[6], sendo que todos eles sofrem atualmente os impactos da crise pandémica mundial. Contudo, uma grande maioria de refugiados (cerca de 86%) encontra-se a trabalhar em países de baixa e média renda, onde, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT)[7], têm sido reportadas as maiores perdas de postos de trabalho. É, também, conhecido o fato dos refugiados trabalharem maioritariamente no setor informal da economia, principalmente, as mulheres (eg.: trabalho doméstico), sendo de esperar que sofram de uma forma particularmente acentuada os efeitos da pandemia (eg.: a situação das empregadas domésticas é particularmente grave, pois, devido à precariedade do seu vínculo laboral, encontram-se à mercê da boa vontade dos seus empregadores e totalmente dependentes da existência de infraestruturas de apoio sociais).

Encontramo-nos, agora, a experienciar uma segunda vaga da crise pandémica COVID 19. Os seus efeitos e impactos diretos na vida e saúde de milhões de pessoas em todo o mundo é uma verdade inquestionável. A par disso, assistimos, também, ao deflagrar de uma crise económico-social que já é apontada por alguns estudiosos, como uma crise com efeitos ainda piores do que a última grande crise económica mundial (2008)[8]. Após um ligeiro abrandar das medidas de confinamento durante os meses de verão, um pouco por toda a parte, o início desta segunda vaga obrigou os Estados a reconfinarem, adotando uma vez mais medidas duras e drásticas para todos os setores da economia, em prol da vida e da saúde de todos. Como seria de esperar a reação das pessoas, cansadas de viver isoladas e separadas dos seus familiares, muitas a enfrentar sérias dificuldades económicas, não foi tão ordeira e pacífica quanto a do início da pandemia. Um pouco por todo o mundo surgiram compreensíveis reivindicações de direitos e manifestações sociais[9].

A verdade é que, apesar da pandemia afetar a todos, existem uns mais prejudicados do que outros. Nesta situação encontram-se os migrantes e refugiados, para os quais a situação epidemiológica veio agravar, ainda mais, a sua reconhecida posição sócio-económica frágil e marginalizada. A este respeito, o Diretor do Departamento de Condições de Trabalho e Igualdade da OIT alerta para o risco de ocorrência de uma potencial “crise dentro de uma crise”[10], com vários trabalhadores migrantes a perderem os seus postos de trabalho e a serem forçados a retornar aos seus países de origem, dos quais haviam saído, precisamente, em busca de uma vida melhor. Esta saída forçada, para além dos efeitos nefastos na vida destas pessoas e das suas famílias, prejudica também os países de origem, uma vez que estes migrantes ocupam setores e atividades cruciais, nomeadamente, em tempos de pandemia, tais como, a prestação de cuidados de saúde (eg.: apoio a idosos), o trabalho doméstico (eg.: limpezas), a agricultura, etc.

 A tudo isto acresce o facto dos países de origem destes migrantes (como todos os outros), terem sido apanhados desprevenidos pelo escalar desta crise sanitária e económica mundial. É dizer que não se encontravam (nem se encontram ainda) preparados para receber, num curto espaço de tempo, um número tão significativo de “retornados” nacionais, não possuindo, nomeadamente, planos nacionais para a integração destes nos seus mercados de trabalho. Um outro fator relevante a ter em consideração, é o facto do regresso forçado dos trabalhadores migrantes, ter uma grande probabilidade de revelar-se, num futuro próximo, uma má decisão de gestão de fluxos migratórios dos países que o promoveram, na medida em que esta medida abdica de uma parte considerável e importante da mão-de-obra necessária para a recuperação das suas respetivas economias.

Como já foi acima referido, outro aspeto a ter aqui em consideração, é o fato dos migrantes e refugiados estarem muitas vezes empregados na designada economia informal, auferindo salários baixos e com fracos ou nulos índices de proteção social em caso de infortúnio (egs.: acidente, doença ou desemprego). O que lhes acontece a si e às suas famílias numa situação de crise económica e social como a que vivemos? Terão garantido o acesso a apoios sociais, sobretudo, ao nível dos bens essenciais, tais como o alojamento, a saúde, a alimentação e o vestuário? E os seus filhos, continuarão a estudar? E o acesso à saúde, está assegurado? Como garantir condições de higiene básicas (eg.: desinfetar e lavar as mãos) e distanciamento social em locais sobrelotados e insalubres (eg.: a conhecida situação de muitos campos de refugiados)[11]? As diversas medidas que foram adotadas pelos Estados para combater e ajudar a superar esta crise económico-social tomaram (ou não) este grupo social específico em consideração? E se sim, foram suficientes? E se não, o que seria desejável e aconselhável fazer? Consideramos que este é um momento único para refletir criticamente sobre estas e outras questões. Pois, se a crise atual nos ensinou alguma coisa, foi, sem dúvida, que não sobrevivemos (ou melhor: existimos) sozinhos, que precisamos todos uns dos outros e que apesar de não existir ninguém imprescindível, cada um de nós desempenha o seu importante e único papel.

Está na altura de compreendermos qual é o papel e o lugar que os imigrantes e refugiados desempenham e ocupam nas nossas sociedades, nas nossas economias e nas nossas vidas e, nessa conformidade, garantir-lhes um tratamento e proteção adequados.


[1] Doutoranda em Direito na NOVA School of Law, é jurista, investigadora no Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS) e especialista em cidadania na GLOBALCIT. Atualmente, encontra-se a desenvolver sua investigação doutoral sobre os Direitos Humanos dos trabalhadores migrantes em situação irregular, financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

[2] Organization, I. L. (2020). ILO Monitor: COVID-19 and the world of work. Third Edition. Acessível em https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/briefingnote/wcms_743146.pdf

[3] Organization, I. L. (2018). ILO Global Estimates on International Migrant Workers – Results and Methodology. Acessível em https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_652001/lang–en/index.htm

[4] OCDE, & ILO. (2018). How Immigrants Contribute to Developing Countries’ Economies. Acessível em https://www.ilo.org/global/topics/labour-migration/projects/WCMS_616038/lang–en/index.htm

[5] ILO. (2018). Care work and care jobs for the future of decent work / International Labour Office . Geneve. Acessível em https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/—publ/documents/publication/wcms_633135.pdf

[6] UNHCR – Coronavirus outbreak

[7] wcms_748485.pdf

[8] https://www.publico.pt/2020/11/20/p3/cronica/impacto-economico-social-crise-sanitaria-vivemos-1939388

[9] Veja-se, por exemplo, o que sucedeu na Europa em https://www.wort.lu/pt/mundo/covid-19-a-europa-reconfina-se-ao-som-de-protestos-que-aumentam-de-tom-5f9ede06de135b9236a09b8b

[10] https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_748992/lang–en/index.htm

[11] Veja-se, por exemplo, a situação dos refugiados rohingya no Bangladesh em Expresso | No maior campo de refugiados do mundo, o corte da internet potencia a propagação do coronavírus

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About Maria Helena Varela

Doutoranda em Direito na NOVA School of Law, é jurista, investigadora no Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS) e especialista em cidadania na GLOBALCIT.